Noroes.out18 Luisa.Vasconcelos

 

 

A Violeta Arraes, i.m.

(O poema)

As escamas já não brilham,
o mar de antes é apenas eco.
Se os pequenos pontos negros
sobre a invólucro endurecido
são algas defuntas ou lavas
de uma súbita explosão,
o que importa?

O que importa
se a onda desapercebida
deixou-o, inerte, no seu universo
de areia e cinza?
Agora ele perscruta
o som imóvel do último
sussurro,
a fulguração de sua imagem
no vidro da vitrine.

Nenhuma arte imitará
o gesto do nadador
de quando, súbito,
a água
o desconhece.
Preso no pequeno tripé,
no escuro de suas escamas
apenas lampeja
o recado.

 

Andando pelas ruas de uma cidade inglesa o passeante para na calçada ao perceber que um peixe na vitrine de uma butique o encara.

Ele sabe:

mais de 100 milhões de anos o separa daquele peixe na sua prisão de pedra.

Examina cauda, guelras, nadadeiras.

E o olho.

Sobretudo aquele olho, tão aberto, como as imagens concêntricas das ilustrações do Buraco Negro, que tudo absorve e torna ínfimo.

Olho de peixe, fractal reproduzindo, em escala mínima, o grande acontecimento cósmico.

O passeante aproxima-se da vitrine.

Ao lado do fóssil há uma anotação, escrita à mão, indicando sua origem e preço: Chapada do Araripe, 15 libras.

É quase certo que aquele peixe deixou de nadar quando a terra foi rachada para se desdobrar em continentes e a África disse adeus à América.

Um peixe-memória. As escamas podem ser lidas como um livro de história.

O fóssil da vitrine tem a mesma procedência dos que foram apanhados, quase dois séculos antes, por George Gardner, médico e botânico escocês.

No livro Viagens ao interior do Brasil, ele descreve sua passagem pelos sertões do Piauí, Pernambuco, Ceará. Enveredou 800 quilômetros litoral adentro, num tempo em que não havia estradas, malas eram carregadas em lombo de mulas, atalhos abertos na mataria a golpes de facão. Onça suçuarana campeando livre. Cobras cascavel ou jararacuçu triscando o chão da caatinga.

Durante quase seis meses ele vasculhou as redondezas do Cariri, catando pedras e plantas e escreveu um poema, que endereçou a um correspondente de seu país. Nos versos, lamenta os amigos não estarem juntos naquele lugar de tantas cores diferentes, tantos cheiros esquisitos. E a pergunta, no tom da mesma saudade do sabiá de Casimiro de Abreu, a fechar o poema: Será que a violeta e a margarida poderiam crescer em terras como aquelas?

Porque na terra dos peixes de pedra tudo é estranho ao botânico.

O pão de trigo, substituído pelo cuscuz de milho. O açúcar, por tijolos de rapadura. Em vez de morangos ou ameixas de seu país temperado, umbus, pequis, buritis.

Ali não há ninguém que fale a sua língua e o protestante George Gardner faz registro da ‘degradação dos costumes’ naquela terra de caboclos brabos, que em passado recente abrigou missão de índios cariris, os protegidos do frei Martinho de Nantes.

A moral é tão escassa, escreve ele, que avistou um padre católico romano, de passagem, acompanhado da mulher, a prima com quem “vivia maritalmente”, como se dizia no antigamente. Os dois seguidos por um magote de oito filhos, dos 10 que ela lhe dera.

O padre é José Martiniano de Alencar, o revolucionário de 1817, ex-presidente da província e então senador do Império. O mais velho dos guris, nos seus sete anos, viria a ser conhecido como o autor de Iracema, que ainda criança seguiu com os pais para o Rio de Janeiro, mas vários passos de seus romances são reproduções dos cenários da infância.

George Gardner regressa à Inglaterra e organiza um herbário monumental, a mais importante coleção de plantas brasileiras do Jardim de Kew, em Londres. O nome Gardneria batiza um dos gêneros das Loganiaceaes.

O botânico e o escritor José de Alencar não devem ter sabido um do outro. Mas o peixe da vitrine, na sua condição mineral estava lá, guardião e testemunha dessas histórias.

Por isso, ao passeante, parece pouco o valor estipulado na etiqueta da vitrine para aquisição da imobilidade perpétua de um indivíduo de mais de 100 milhões de anos.

O peixe por detrás do vidro, continua a observar com insistência o passeante. Naquele finalzinho de outono, intrigado, ele, o passeante, segue se perguntando por que, num mundo de fantasia, de devaneio consumista e compulsão pela novidade, há tanta gente interessada em possuir o nadador empedrado? Uma vontade de permanência, talvez uma espécie de ânsia do eterno? Estaria nele contida a metáfora da presença de quem o adquire? Uma fulguração da passagem de um reino a um outro reino da Natureza? Aquele que o possui e que volve ao pó, será menos precioso do que um bicho enclausurado, a lançar seu olhar que atravessa as idades? Seria aquele fóssil a representação dialética do vivo/eterno transformado em ícone para contemplação.?

Num delírio momentâneo, o passeante sonha o peixe a flutuar na vitrine, como se ressurgisse do fundo de um qualquer oceano. Regressando aos socavões de serra de onde saiu arrancado a fórceps, a nadar. E, na sua navegação, vai encontrando as figuras com as quais se deparou no curso de sua história infinita: o botânico escocês ou o autor de Iracema, também aquele desconhecido para quem olha agora, parado na calçada de uma cidade inglesa.

O passeante se despede do peixe. Ele sabe: aquele fóssil oferecido como adereço é registro de um tempo da Terra, de um lugar que já foi latifúndio marinho e hoje é sertão a mendigar água.

Talvez tenha sido um dos talismãs do grande místico Antônio Conselheiro, quando ele fazia ecoar nas vastidões de Jeremoabo:

“O Sertão vai virar mar, o mar vai virar Sertão!”

Essa a “presença” que o fóssil nos traz:

a imortalidade pressentida no âmago da finitude.


> Everardo Norões é escritor, poeta e cronista. É autor de, entre outros, Retábulo de Jerônimo Bosch