Everardo ago.18

 

 

O pub está cheio.

Entre os músicos, um rapaz toca banjo.

Desde os tempos da jazz band da minha cidade de interior, a Hildegardo e seu conjunto, nunca mais ouvi alguém tirar aquele som meio ranzinza, evocando cheiro de curral misturado a barulho de chocalho. Mas é ele, este sonido, que faz a diferença, junto ao do violino e o da gaita de fole. Não a gaita convencional, ar puxado à força dos pulmões. Aqui é o braço que movimenta o fole, atado a ele por um cinto pequeno, de couro. O mesmo gênero de fole da forja do ferreiro que temperou o aço dessa gente irlandesa, forçada a brigar contra a prepotência colonial e o agreste do lugar. A que engrossou as filas das migrações e rendeu tanto presidente de república quanto mafiosos retratados em filmes como Era uma vez na América.

No intervalo da música, flutuando feito personagem de quadro de Chagall, o homem ruivo, baixinho e gordo, acerca-se sorrindo. Aponta a própria cabeça e exclama: Stocked in the head! É que a moça ao lado cantarola o que havia escutado minutos antes. E ele, tomado pelo espírito do malte rendido aos pés do velho carvalho, deve achar simpático o jeito de uma estrangeira solfejar aquele som. Mesmo se, a essa altura dos acontecimentos, para ele qualquer música deva parecer a mesma da véspera.

Quando ele diz “estocar na cabeça” dou-me conta do quanto seu idioma é versátil e, ao mesmo tempo simples e complicado. Tanto faz “estocar” música ou pensamento como garrafas de uísque num armário. A exemplo daquelas do Jameson na prateleira envidraçada, iguais às que durante anos a fio animaram a rapaziada ouvindo o The Dubliners. Porque aqui é o O’Donoghue’s, da Merrion Row, Dublin. Então, calculo que o homenzinho, pela idade que tem, certamente “estocou” no juízo Whiskey in the jar, a música amalucada do grupo que conta a história do sujeito que assalta o capitão e leva a grana para a mulher. Ela finda por trai-lo e ele, desiludido, acaba se vingando no pote de uísque.

 

Fim do intervalo.

A moça gordinha volta a cantar, ao mesmo tempo que acaricia o violino. Tem voz de soprano e estilo camponês desse lugar frio e de manhãs brumosas. De noite, costuma se apresentar no pub. De dia, é guia na caserna que foi transformada em museu para lembrar o massacre dos irlandeses em 1916, ocorrido após a famosa Insurreição da Páscoa. No edifício foram confinados os revoltosos, homens e mulheres, alguns do quais findaram no pelotão de fuzilamento. As paredes fazem a reportagem, recheadas de fotos e informações sobre o episódio. Os antigos aposentos militares reconstituídos expõem como era a rotina do quartel. E as amostras de fichas policiais, anotadas e datilografadas, com as devidas rubricas oficiais, comprovam o quanto a organização da morte, em tempos de opressão, é sempre mais bem feita do que a ordenação da vida. A exemplo dos arquivos do DOPS de São Paulo.

Agora, a moça está em plena função no bar. E Hans, o amigo suíço, festeja o regresso ao lugar onde, anos antes, veio escutar sua banda favorita: The Dubliners. Sentados em bancos de madeira, ninguém se importa com o desconforto. Nem mesmo quando a mulher de fala fanhosa bate com a bolsa em nossas costas cada vez que se vira para o balcão ao lado pedindo outra dose. Porque aqui jovens e velhos querem mesmo é compartilhar o que restou daqueles ventos pouco ortodoxos que inflaram as velas dos anos 1970.

As músicas às vezes dão a sensação de ladainhas de um catolicismo associado à rebeldia. Sentimento de quando se é levado a algum descampado onde o silêncio pede um aboio ou o gemido de sanfona quando São João está perto. Só que, em vez do calor sertanejo, aqui o vento trisca gelado e a língua tem algo da rispidez desse banjo cujo dono foi embora mais cedo, pois amanhã é segunda.

Nos festivais é tradição as pessoas se juntarem numa roda. Quem sabe tocar, traz o instrumento e arrisca uns acordes. Pode ser o que for: concertina – uma harmônica pequena de formato hexagonal –, violino, tambor ou gaita. Tudo acontece como chamamento para uma confraternização sem motivo certo.

De repente, avisto um instrumento esquisito, família das cordas, formato diferente dos que frequentam as bandas do lugar. Faz figura de intruso.

– E essa espécie de guitarra com jeito de alaúde árabe? pergunto a Hans.

– Uma adaptação do bouzouki, utilizado na música grega, explica.

Porque, mesmo por ser festa típica, ninguém se incomoda com novidades estrangeiras. Quiçá porque nada assusta essa gente de terras cercadas de mar, onde o forasteiro é visto como alguém capaz de trazer o inusitado ou alguma dose de alegria. Afinal, são as trocas dos povos das ilhas, as que pariram mitos e criaram seus homeros, e onde a música é passaporte rompedor de fronteiras. É quando penso que em qualquer lugar do mundo sempre há alguma coisa parecida com a aldeia de onde saímos. Lembro de alguém ter chamado a atenção sobre a sobrevivência celta em alguns traços da cultura sertaneja. Trazidos, sabe-se lá, por portugueses ou africanos ou mouros ou celtas ou...

Enquanto “estoco” essas coisas na cabeça, os músicos apressam o ritmo que mexe com nosso desconcerto, a levantar o astral. Timbres com a mesma espécie de vibração de outros mundos. Como as orquestras africanas de timbila, sem partitura, regidas por um apito. Dezenas de músicos a percutirem marimbas de tamanhos variados, feitas de madeira e cascas de frutos, amarrados com cordas de cipós, como se qualquer peça de metal pudesse ferir aqueles presentes da Natureza.

Saio do pub a dizer a mim mesmo o quanto parece despropositado alguém pretender uma cultura “pura”, presa “às origens”, desprezando os afagos das diferenças. Capaz de amaldiçoar o blues, porque nos chegou dos Estados Unidos. Esse mesmo blues que, um dia, também foi, por sua vez, contagiado pelo sonido dessas terras de Joyce.

E tão parecido com o blues que eu escutava na jazz band de minha cidade de interior, tão longe do mar, tão perto dessa viagem ao interior do O’Donoghue’s, da Merrion Row.

 

* Everardo Norões é escritor, poeta e cronista. É autor de, entre outros, Retábulo de Jerônimo Bosch