Everardo.jul18 Hana Luzia

 

 

A TV mostra a reportagem sobre a surfista Maya Gabeira. Primeiro, o acidente na Praia de Nazaré, em Portugal, quando ela é arremessada por uma “morra”, onda gigante que lá ultrapassa os 30m. Depois, sua volta ao lugar de partida, onde reza numa igrejinha para começar tudo de novo, fiel às marés que no seu movimento sugerem a vida em permanente recomeço.

A matéria faz pensar na relação entre o exercício do surfista deslizando sobre as águas e o do poeta equilibrando-se entre palavras. Frases e versos, pranchas sobre as quais a poesia faz acrobacias com pensamentos e emoções. Do mesmo jeito que o surfista rima sobre o líquido da página. Ao se lançar na crista de uma onda, ele é como o poeta contando sílabas, ouvindo dançar a música de versos que também lhe chegam em vagas. Uma mesma procura de ritmo, de equilíbrio, recolhimento, concentração.

O surfista, além de conhecer os riscos de seu ofício, sabe o quanto a arte do instante é ingrata. Quando uma façanha que se julgava inatingível acontece, nem sempre é possível de ser registrada. O autor da proeza é, às vezes, sua única testemunha. É como se alguém, após escrever um texto, perdesse, de repente, o que lhe custou horas de trabalho. Uma espécie de iniciação para quem um dia terá de enfrentar a maior das “morras”, da qual nem mesmo o melhor surfista consegue sair de seu “tubo”.
O filme Sociedade dos poetas mortos trata sobre isso. Nele, o ator Robin Williams faz o papel do professor que vai ensinar numa escola de meninos ricos. Abre sua primeira aula recitando Walt Whitman para os alunos, O Captain! my Captain! our fearful trip is done; / The ship has weather’d every rack, the prize we sought is won.(…).

“Capitão, meu capitão! nossa temível viagem finda;
O navio resistiu toda a tormenta, o prêmio que buscamos foi ganho;
O porto está próximo, escuto os sinos, a multidão aplaude,
Enquanto o olhar segue a quilha firme, a nave sombria e ousada:
              Mas ó! coração! coração! coração!
              Ó! as gotas sangrentas de vermelho.
              Ali, no convés, meu capitão jaz,
              Caído, morto e frio.”(...)

O poema tem três estrofes, cada uma com dois quartetos, e trata da viagem do capitão do navio que, após vencer a terrível tempestade, consegue alcançar o porto. A multidão o aguarda no cais, com flores e aplausos, mas ninguém sabe que ele está morto. A metáfora alude à morte de Abraham Lincoln, o presidente dos Estados Unidos, assassinado em 1865. O navio é o país do qual foi presidente. O professor mostra aos jovens fotos de antigos alunos da escola, gente que fazia parte de uma sociedade rica e conservadora. Todos mortos. É a tentativa pedagógica do mestre de despertar os alunos para a importância da poesia e de curtirem a vida derrubando convenções.

Usufruir a alegria do instante de criação é comum ao escritor e ao surfista. Para o surfista, é a sensação de navegar uma crista de onda, dentro de um ritmo, num diálogo perfeito entre a mente e o corpo, amoldando-se a um compasso. Alinhar com perfeição os movimentos quando executa uma “cavada” ou uma “troca de borda”. Assim também ocorre com quem compõe um texto, as palavras harmonizando-se ao pensamento de quem escreve. Tais movimentos fazem parte de uma ginástica eterna. Valem para a escrita e para a música, para a obra do carpinteiro ou do pedreiro. Somos iguais em ofícios diversos e há um diapasão invisível medindo timbres, versos, notas de nossa humana sinfonia.

Gustave Flaubert, o romancista francês, é um bom exemplo de surfista das palavras. Sua correspondência é repleta de comentários sobre o ritmo, o equilíbrio da fala, o andamento das frases. Na casa dele havia um lugar especial onde lia em voz alta as páginas que escrevia. A empregada que lhe atendia era sua ouvinte preferida. Quando terminava a leitura, ele perguntava se tudo parecia de seu agrado. Se a resposta dela fosse “não”, ele insistia no trabalho, recortava palavras, remendava textos, suprimia parágrafos. Assim construiu Madame Bovary, romance importante da literatura ocidental.

Em Bouvard e Pécuchet, nomes dos dois personagens e título da obra que Flaubert nunca terminou, há uma passagem sobre a maneira como os dois leem em voz alta o trecho de uma peça de Racine. Bouvard recita bem e Pécuchet tenta imitá-lo. Mas o resultado é tão medíocre e a voz dele tão monótona que se perde numa espécie de sussurro. Então Bouvard explica-lhe como um texto deve ser interpretado. A leitura, diz, precisa ser iniciada de um jeito mais suave, evoluir de um tom mais baixo ao mais alto, a voz emitida em duas gamas diferenciadas, uma crescente, outra decrescente. E Flaubert, ao comentar essa passagem do livro, confessa que ele próprio fazia esse exercício todos os dias pela manhã, deitado na cama, ainda de pijama, imitando o que já era aconselhado pelos antigos gregos.

Muitas vezes o impacto da beleza de uma arte não depende de seu entendimento. É assim quando ouvimos um texto recitado ou vemos a bela manobra de um surfista. Há um deleite na observação de um jogo de corpo. Também na escuta de um poema, mesmo quando a língua nos é desconhecida. Em alguns lugares, os exercícios que eram feitos por Flaubert vêm ganhando espaço. Está na moda a leitura de textos clássicos em grego e latim. Nessas sessões são respeitados a cadência dos versos, a melodia e os ritmos, num processo de educação da dicção e da escuta. Pouco importa se o leitor entende esses idiomas ou se sabe o que significa um “hexâmetro datílico”. O que importa é assimilar a beleza, o ritmo e “dar corpo” às línguas que fundaram nossas literaturas.

Um colega iraniano certa vez me disse que não sabia se eu conseguiria entender o que ele iria recitar, mas queria demonstrar o quanto a sua língua era bela. E disse de cor uns versos em persa, sem sequer mencionar nome de autor. Sua voz veio modulada de tal jeito que, mesmo sem entender o poema, ficou a impressão de que deveria tratar-se de alguma obra-prima da literatura de seu povo. Voz de uma onda ou marola roçando uma quilha. Versos de um Omar Khayyam ou de Hafiz.