No dia 5 de setembro de 2014, às 16h GMT, dia e hora do aniversário dos 100 anos do poeta Nicanor Parra, seu poema El hombre imaginário foi recitado pela presidente do Chile, Michelle Bachelet, e repetido, em todo o país, por milhares de pessoas. Um ato inusitado na história da literatura.
No poema, os substantivos são seguidos do adjetivo “imaginário”, à exceção da palavra dor. A “mulher imaginária”, sonhada pelo poeta, de fato existiu. Na ocasião, ele tinha 64 anos, ela 32. Tempos depois de ter ido embora, ela suicidou-se. Nicanor Parra confessou que havia escrito o El hombre imaginário com uma pistola em cima da mesa. Foi salvo pelo poema.
O homem imaginário
vive numa mansão imaginária
rodeada de árvores imaginárias
à beira de um rio imaginário
(...)
Sombras imaginárias
vêm pelo caminho imaginário
entoando canções imaginárias
à morte do sol imaginário
E nas noites de lua imaginária
sonha com a mulher imaginária
que o brindou seu amor imaginário
volta a sentir essa mesma dor
esse mesmo prazer imaginário
e volta a palpitar
o coração do homem imaginário
Em 2011, sua obra recebeu o prêmio Miguel de Cervantes, o maior reconhecimento para um autor de língua castelhana. Para chamar a atenção sobre a importância do poeta chileno e celebrar a literatura em idioma espanhol, o Instituto Cervantes distribuiu 100.000 postais de seu livro Hojas de Parra (Folhas de Parra).
O nome de Nicanor Parra foi, por diversas vezes, cogitado ao Nobel de Literatura. Físico e matemático, professor que “perdeu a voz dando aulas”, como escreveu num dos poemas, publicou em 1937 seu primeiro livro, Cancionero sin nombre. Mais tarde, o livro foi por ele rejeitado e os poemas excluídos de suas antologias. O que buscava Nicanor Parra era uma poética apta a incorporar uma noção de vida, a dialogar com as coisas do mundo. Por isso, esperou quase 20 anos para, em 1954, publicar seu segundo livro: Poemas y antipoemas. Obra de renovação da poesia latino-americana, distingue-se por uma linguagem coloquial, anti-heroica, impregnada de pequenos eventos do cotidiano, bem diferente da que predominava entre os escritores de sua geração, timbrada por vozes altissonantes e discursivas. Após Poemas y antipoemas, Nicanor Parra comentou, em tom de blague, que durante meio século a poesia havia sido “o paraíso do bobo solene, até que cheguei e instalei-me com minha montanha russa”.
A estrofe que abre o livro, do poema Advertência ao leitor, anuncia sua intenção de ruptura:
Os pássaros de Aristófanes
Enterravam em suas próprias cabeças
Os cadáveres de seus pais.
(Cada pássaro era um verdadeiro
cemitério volante)
A meu modo de ver
Chegou a hora de modernizar essa cerimônia.
E eu enterro minhas penas na cabeça
dos senhores leitores.
Nicanor Parra faz parte de uma família de artistas. Irmão mais velho da cantora Violeta Parra, foi dele que ela recebeu, na juventude, um gravador e a sugestão para que registrasse contos e músicas do folclore chileno. Mais tarde, escreveriam juntos canções que se tornariam populares, a exemplo da Cueca de los poetas, cuja letra se refere, com humor, à poesia de Gabriela Mistral e Pablo Neruda:
Dice la gente, sí,
no cabe duda
que el más gallo se llama
Pablo Neruda.
(Diz o povo, sim/ninguém se iluda,
que o mais galo se chama/ Pablo Neruda)
Numa de suas entrevistas, revelou ter o costume de procurar na rua palavras, expressões e manifestações de sentimentos com os quais compunha seus poemas. Exemplo disso é a “desconstrução” da oração Padre-nosso, no livro Obra gruesa (1969). O seu Padre nuestro recorre a uma ironia associada ao coloquial e nos esclarece porque a poesia de Nicanor Parra é capaz de permitir a uma ampla variedade de leitores o acesso à sua “montanha russa”:
Pai-nosso que estás no céu
Cheio de todo tipo de problemas
Com a testa franzida
Como se fosses um homem vulgar e comum
Não penses mais em nós.
Compreendemos que sofres
Porque não podes consertar as coisas.
Sabemos que o Demônio não te deixa tranquilo
Desconstruindo o que constróis.
Ele se ri de ti.
Porém nós choramos contigo:
Não te preocupes com seus risos diabólicos.
Pai-nosso que estás onde estás
Rodeado de anjos desleais,
Sinceramente: não sofras mais por nós.
Tens que te dares conta
De que os deuses não são infalíveis
E que nós perdoamos tudo.
O escritor argentino Ricardo Piglia contou que leu pela primeira vez Nicanor Parra quando ainda era estudante. Era de tarde, ele entrou numa livraria, comprou Versos de salón (1962), sentou-se num bar e começou a ler. Quando se deu conta, havia anoitecido e ele era outro. Também Roberto Bolaño, escritor chileno, observou que o autor de Poemas y antipoemas parecia escrever como se estivesse prestes a ser eletrocutado.
Soliloquio del individuo, que encerra o livro Anti-poemas, é um desses poemas perturbadores. Nele, é narrado, em tom niilista, o percurso do Humano:
Eu sou o Indivíduo.
Primeiro vivi numa rocha
(Ali gravei algumas figuras).
Logo busquei um lugar mais apropriado.
Eu sou o Indivíduo.
(...)
Bem.
Melhor é talvez que volte a esse vale.
A essa rocha que me serviu de lar.
E comece a gravar de novo,
De trás para diante, gravar
O mundo ao contrário.
Porém, não: a vida não tem sentido.
Da surpreendente oficina do poeta e matemático não nos chegam apenas versos. Dela ressurgem, reconstruídos e reciclados, objetos e palavras, a exemplo da exposição Artefactos visuales, mostra que incluiu uma série de esboços sob o título de Tablitas de Isla Negra. Num dos desenhos, o Cristo carrega a cruz montado numa bicicleta.
Em 5 de setembro de 2017 Nicanor Parra fará 103 anos. Sua obra está traduzida em vários idiomas. Na língua inglesa, poemas de sua autoria têm versões assinadas por escritores consagrados, como Allan Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti, William Carlos Williams e Thomas Merton.
Em português, é possível ler do “homem imaginário” somente traduções esparsas.
Nenhum livro.