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Este texto será intercalado por citações retiradas dos livros Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch e O sentimento da catástrofe – entre o real e o imaginário, de Annie Le Brun. Alguns discursos necessitam de leituras sem qualquer maneio de conciliação; reproduzidos aqui de forma mais livre e direta, na esperança que esses fragmentos possam alcançar os ouvidos do leitor, como um ruído agudo, límpido, furioso.

“A sociedade precisa reaprender a defender as mulheres”, profere Svetlana Aleksiévitch perante uma sala de imprensa atenta. Esse pequeno e certeiro trecho deu o tom que se fez presente durante as longas respostas da jornalista bielorrussa, ganhadora do último Prêmio Nobel, acerca do lugar de fala da mulher. A mulher no mercado editorial, a mulher no jornalismo, a mulher na guerra, a mulher na política, a mulher no amor, a mulher que precisa de coragem, sim, porque estamos sempre ameaçadas pelo outro, pelo horror do mundo. “A verdade é que eu ainda não consegui encontrar a chave para a voz masculina. Talvez seja eu que não saiba conversar com os homens”, diz Svetlana num misto de reflexão e sorriso.

(Por acaso há algo mais pavoroso que o homem?)

Mulheres que perderem alguém, mulheres que cuidaram de alguém-nos-minutos-finais. Todas sozinhas em suas dores, sobreviventes ou, mais do que isso, personagens que cambalearam pelas margens das piores-coisas-possíveis. Testemunhos para preencher a história omitida, afinal, como diz Michel de Certeau, o que chamamos de histórico é o mito da linguagem – deve-se, enfim, falar sobre a ausência física, os corpos mortos, o silêncio da radiação. “Um soldado me questionou: como você pode escrever sobre a guerra se você nunca deu um tiro ou matou uma pessoa? Eu disse que sempre quis preservar meu lado humano, minha normalidade”, relembra a bielorrussa e completa: “Hoje a vida é mais complexa porque a cada dia você tem que pensar como se manter humano”.

(Escrevo os relatos da cotidianidade dos sentimentos, dos pensamentos e das palavras. Tento captar a vida cotidiana da alma. A vida ordinária de pessoas comuns.)

No decurso da conversa aberta ao público, o mediador, Paulo Roberto Pires, disse que Svetlana era uma mulher-ouvido. Tal característica de escuta se estende à literatura pois, para além da capacidade de observar e apurar, a montagem dos monólogos é primorosa. Para atingir esse tipo de esqueleto narrativo forte, alicerçado no discurso de outros, é preciso um cuidado extremo com a palavra-dita. “Eu valorizo essa entonação de amizade. Não me interessa a verdade histórica, mas sim a verdade do ser humano”.

(Há uma maneira involuntária de recuperar o que nos escapa no barulho do tempo. Do acaso dos encontros por vezes surge aquilo que tivemos o desleixo de apenas entrever sem pensar em retomar, ou a preguiça de desenvolver contando, ao contrário, com uma retomada futura.)

Svtelana repete que a humanidade não estava preparada para o desastre em Tchernóbil. Não haviam inimigos, nem uma maldade palpável. Havia o nada, o comum, as flores nos jardins, os animais pastando, os fogões a todo vapor, o almoço na mesa. “Como seguir alguém que não se mexe?”, pergunta Bolaño em Estrela Distante. Mas o fantasma-atômico parece ainda pior do que os assombros bolaneanos. Ele se move rápido, contínuo, destruidor absoluto.

(O acontecimento se assemelhava a um monstro. Em todos nós se instalou, explicitamente ou não, o sentimento de que havíamos alcançado o nunca visto.)

“A humanidade não aprende com seus próprios erros. Governos escondem a realidade não só do seu povo, mas também do mundo inteiro”, analisa Svetlana. Por apresentarem o real em contrapartida ao discurso hegemônico e alienado do governo, os seus livros foram processados e a jornalista perdeu o emprego e foi para o exílio. “No meu país, se um pintor for honesto, ele pincela contra o governo. Eu mantive o meu caráter diante do poder”.

(Não há dúvida de que as atuais variações sobre o tema da devastação procedem do desejo de imaginar, juntamente com a insensata esperança de conjurá-los, os resultados ainda imprevisíveis de uma situação cuja complexidade nosso pensamento não consegue alcançar: entre os campos de extermínio nazistas ou soviéticos e as calamidades nucleares do mundo dito livre, sem mencionar a poluição planetária, haverá ainda sentido para a noção de escolha?)

Um homem que abranja todos os sentidos. Não o homem-consumo ou o homem-tecnologia. Essa é a saída para o nosso futuro, de acordo com a bielorrussa. “Esse tipo de homem poderia ser bom para o mundo”. Talvez, a expectativa no porvir esteja numa voz vigilante às alternativas humanas, aos cacos que todos nos juntamos, uma vez ou duas, apesar dos cortes abertos e das feridas antigas, definitivas.