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A múmia de Evita era fardo insuportável para qualquer regime. Após a queda de Perón, vivenciou inúmeros itinerários, despertou paixões insólitas e desdenhou diante de noções práticas de vida e de morte, erguendo uma simbologia do que deveria ser certa ideia de salvação argentina. Por fim, acabou ressurgindo, de forma inusitada, na Europa décadas após a morte – a concreta, a física - da senhora dos descamisados. Atualmente repousa no cemitério da Recoleta, ainda que guias turísticos gostem de inflar a imaginação dos visitantes quanto à autenticidade de quem esteja de fato ali sepultada. É o que conta Tomás Eloy Martinez no romance histórico (mais romance que histórico) Santa Evita.

A história da múmia argentina até parece criação do realismo maravilhoso, que foi colado à identidade latino-americana. É como se nossos extremismos políticos nos devolvessem sempre de volta a Macondo. No Brasil, algo parecido acabou ocorrendo: o legista que fez a autópsia de Santos Dumont, homem baixinho, franzino, escondeu o coração, ironicamente enorme, tal e qual o órgão de um boi, para que não fosse usado pela ditadura de Vargas como troféu. Mas para que serve um corpo sem vida, um coração estático?

“Cortemos o órgão fora pela graça da coisa e, uma vez solto, deixemo-lo escorrer até perder todo o sangue, deixemo-lo secar num recipiente de porcelana; depois de três dias, a aparência do coração humano é uma decepção só” – Com o desejo de tentar entender de forma fisiológica o clarão que evoca esses inusitados relicários, começa o romance O homem com asas, do escritor holandês Arthur Japin. Já um best-seller na Holanda, o livro toma como ponto de partida um Santos Dumont pouco retratado pela nossa oficialização do passado: gay e suicida. Um Dumont que, de certa forma, guarda esses dois pontos em comum com a homenageada da Flip deste ano, Ana C.

“Na Holanda não é um problema ser gay, não é algo que vá arranhar a imagem de um herói. É apenas um fato da vida. Então, não é um problema, para mim como autor, tratar desse fato do meu livro. Da mesma forma que ser um suicida não tira a bravura de um herói”, apontou Jaspin, que se disse fascinado pela imagem do Dumont como um homem que gostava de estar sempre no alto, acima das nuvens. Num lugar tão alto que não conseguia ouvir as fofocas a circularem ao seu redor.

Tendo trabalhado como ator, Japin ergue sua narrativa com a coerência de uma voz dramática que guarda uma simpatia tamanha pelo seu objeto de estudo, como se o próprio objeto estivesse guiando, sussurrando, para essa voz. É um livro que pode ser lido como uma tentativa de alargar o Dumont oficial, como um romance policial vibrante ou mesmo como uma tentativa de dilatar nossa identidade, que muitas vezes se retrai diante de inconfissões egoísta. O homem com asas é sobre um novo Dumont. Um Dumont desconhecido, tal e qual a Ana C que assombrou a Flip este ano.