Após ser silenciada na mesa de abertura, Ana C precisou dividir o primeiro – o primeiro – debate sobre o seu trabalho no penúltimo dia da Flip que a homenagearia: “De Clarice a Ana C.”, com Benjamin Moser e Heloísa Buarque de Hollanda, representando, respectivamente, as duas escritoras. Mas é impossível compartilhar holofotes com Clarice Lispector (até a edição deste ano, a única mulher a ser homenageada no evento). Clarice é um monumento capaz de emudecer e sombrear tudo ao seu redor. É como o Cristo Redentor, a Floresta Amazônica. Talvez apenas Machado de Assis e Drummond lhe alcancem em estatura.
Quando falamos aqui da sombra lançada por Clarice, não estamos reclamando do tempo dedicado a cada uma de delas – bem dividido pela mediadora. Ou da tentativa de encontrar um elo entre as duas, para além do êxtase, do bliss, de Katherine Mansfield que ambas beberam. Estamos falando de relegar a obra de Ana C para um plano coadjuvante, menor, ainda que a autora continue a merecer a iconografia de mulher misteriosa e bela que enfeita Paraty este ano. Ana C sai da Flip como uma mulher bela com uma obra menor. Tal e qual entrou.
E uma obra menor, claro, diante de uma percepção míope de literatura, que não consegue enxergar para além de cânones – convenhamos: é turbulento, é arriscado, lidar com o contemporâneo, com a obra que está sendo produzida e contaminando o agora. Ainda que falecida há mais de três décadas, Ana C ainda não foi museificada ou pacificada, ainda incomoda. A obra da geração de poetas dos anos 1970 e 1980 não para de respingar e de arregimentar novos leitores, vide as novíssimas e eficientes reedições de nomes como Chacal, Leminski, Waly Salomão e dela própria.
E a própria fala de Heloísa pontuou temas que a programação da Flip poderia ter lançado mão, baseados no universo da sua homenageada: o discurso político em tempos sombrios da geração de poetas dos anos 70; o feminismo; e o tal do êxtase, o bliss, do desejo gay; a intimidade como retórica... Ao precisar sustentar Ana C com Clarice, a organização da Flip só mostra a necessidade, a urgente necessidade, dos eventos literários do Brasil em olhar para mais e mais escritas até então laterais. É que os tempos agora são laterais.
E aqui um trecho do poema que Angélica Freitas publicou esta semana na Folha de São Paulo e que Heloísa, por diversas vezes na mesa, apontou como exemplar em mostrar o que ela própria sentiu quando da primeira vez que leu Ana C:
“ana c. me salvou de ser técnica em eletrônica
aos dezesseis
quando entrou de vermelho
em minha vida
e me deixou
aos seus pés
eu não tive escolha
foi um baita clarão
soco na goela seguido
de cisco no olho
quem é ela
o que é isto
quem sou eu”