Lilia Schwarcz com seu necessário sorriso postiço mostrou a diferença que faz uma mediadora. O clima político-social-emocional do Brasil, é claro, já havia aparecido nos dois primeiros dias da Flip, via alfinetadas discretas, aqui e ali, como os sinais que denunciam uma infecção a caminho. Mas, na primeira mesa desta sexta, ele emergiu de braços abertos, incômodo, levantado pelos brasilianistas Benjamin Moser e Kenneth Maxwell – e, claro, pelo sorriso postiço de Lilia.
Gringos têm a seu favor a liberdade de um distanciamento que nós, por tão próximos, por tão passionais, muitas vezes deixamos passar (deliberadamente ou não). É claro que nesse processo há sempre o risco do macondismo, do exotismo. É claro. Mas o soco é, por vezes, necessário. “As pessoas não acham possível um estrangeiro gostar de Elizeth Cardoso. Como não?”, reclamou Moser, deixando claro que também leva seus socos, por estar tão longe e tão perto ao mesmo tempo.
A mesa Breviário do Brasil reuniu alguns dos pontos chaves que atravessam a Flip, a tal da ficção e a tal da realidade que atravessamos em 2016, a saber: o governo interino, o feminismo, o racismo e a nossa imagem por dentro e por fora. Só não foi melhor porque o som do microfone de Maxwell deu problemas em várias ocasiões. Aqui alguns momentos:
“O Brasil quer mudar para as coisas ficarem no mesmo lugar. Temos um governo interino de homens com mais de 70 anos, nesse momento de transição” – Kenneth Maxwell.
“O monumento ao Ipiranga (que fica em São Paulo) é muito masculino. Os monumentos do Brasil são muito masculinos, com exceção da estátua de Clarice Lispector que tem agora no Leme” – Benjamin Moser.
"No Brasil temos um nacionalismo exagerado com o desejo de assassinar o país" - Benjamin Moser.
“Há corrupção. Mas a gente tem de lembrar que não foi o PT que criou a corrupção no Brasil” – Kenneth Maxwell (a declaração de Maxwell veio depois da fala de Lilia de que estaríamos vivendo um momento histórico, quando não apenas estariam sendo punidos os corruptos. Também os corruptores”.
“Cada vez que venho ao Brasil vejo uma nova coisa maluca, que nunca havia visto antes” – Benjamin Moser. Entre essas coisas malucas, uma espécie de retorno do Jaburu, animal que, para Capistrano de Abreu, simbolizaria o Brasil.
"Tenho a impressão de que o Brasil está num momento muito crítico. Um momento de típica transição brasileira." - Kenneth Maxwell
“Foi uma foto que pegou muito mal no mundo inteiro para o Brasil, que fez a imagem do país regredir mais de 20 anos” – Benjamin Moser, sobre a foto da posse de Michel Temer como presidente interino, cercado apenas por homens, apenas por homens brancos.
No finalzinho da mesa, a questão do homem branco voltou à discussão. Moser foi na jugular de Gilberto Freyre: “O Brasil teve mais de 400 anos de escravidão e Gilberto Freyre acha que tudo deu certo depois. Não podemos achar que tudo deu certo porque o Gilberto Freyre gostava de mulatas. E ele gostava, há anotações disso”. Em seguida provocou: “Não vejo negros na plateia da Flip. Há tem uma ali, bem-vinda. Tem outro ali. Então deu tudo certo, esqueçam o que falei”. O tom de ironia faz coro às críticas que a mesma Flip vem recebendo por não ter convidados autores negros para sua programação oficial.
A temperatura alta da mesa de abertura desta sexta respingou na mesa seguinte, quando João Paulo Cuenca começou a sua fala com um “fora Temer”, espécie de cartão de visitas de boa parte dos debates que acontecem agora no Brasil. O mediador, no entanto, passou logo para a primeira pergunta.