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1.

Em Autobiografía como autofiguración – estrategias discursivas del Yo y cuestiones de género, José Amícola afirma que existe uma espécie de ponto descontínuo no qual o sujeito se move e oscila entre o seu exterior corpóreo e a sua individualidade. Essa condição intermitente produz efeitos profundos no corpo que se inscreve em espaços sociais e urbanos, tornando o sujeito símbolo de certa performance do desvio. Descobri que estava morto, quarto romance do escritor carioca João Paulo Cuenca, dialoga de forma significativa com as ideias de Amícola – para além da construção de um narrador vacilante, Cuenca representa, naquelas páginas, um corpo fraco, viciado, porém sempre pronto para o pulo (qualquer que seja o abismo). Com inspirações nos escritos de Lima Barreto – em especial, Recordações do Escrivão Isaías Caminha – o livro parte da descoberta de sua morte para os mecanismos de controle social, em 2011, após a identidade do escritor ter sido roubada no bairro da Lapa. (há algo de mais performático do que morrer?). “A partir do momento em que eu me confronto com uma prova material de que eu estou morto, e vejo ecos entre essa prova e certas coisas que estão acontecendo na minha vida, isso tem uma repercussão que ultrapassa o documento. A forma que eu tenho para lidar com essa situação é escrever, em condições muito extremas, um romance. A morte me deu a liberdade plena de dissecar o corpo esviscerado da cidade e daquele quarteirão que se parece muito com uma mesa de autópsia”, explica Cuenca durante nossa conversa num dos bares da Praça da Matriz. O desaparecimento como forma afetiva de ocupar o espaço arquitetônico; a morte como ponto de impulso situacionista – reescrevo a cidade porque fui aniquilado.

2.
Grafa Cuenca que os cariocas “(...) ao longos dos séculos, encontraram na sua porta as marcas do príncipe regente expulsando-os de suas casas em 1808, viram a administração Pereira Passos anunciar o bota-abaixo dos cortiços da Cidade Velha em 1904, a prefeitura de Carlos Sampaio fazer o mesmo com o Morro do Castelo e as casas ali construídas em 1920, o governo Carlos Lacerda remover favelas da zona sul na primeira metade dos anos 1960 e a Secretaria Municipal de Habitação repetir a história nos anos 2010 (...)”. A falta de residência fixa, o nomadismo coagido que perdura durante séculos na cidade do Rio de Janeiro: pontos de confluência entre o eu e o coletivo, pois, se os cariocas são forçados, pelo poder público e privado, aos caminhos errantes, o narrador também necessita de uma fuga, afinal, o espaço destroçado sufoca e oprimi o sujeito. Beatriz Sarlo fala de como a cidade perfeita não pode ser suportada porque torna-se utópica e labiríntica. Talvez, o território carioca esteja mesmo perdido em sua própria confusão de excelência estética, na busca por uma perfeição que beira o disparatado. Enquanto se consume em suas loucuras, a cidade expõe ruínas, detalhes de abandonos, pequenos fragmentos que são, sobretudo, saídas narrativas – os tais desvios dos quais fala Amícola. Descobri que estava morto é, também, essa possibilidade de escapatória. Distender os arredores até que seja factível, enfim, enuncia-los.

3.
“Eu estou no topo da pirâmide do privilégio!”, me responde Cuenca quando pergunto sobre o seu status de homem, branco, classe média, centro-sul-brasileiro. “O meio literário, entre os círculos de cultura, me parece o mais aristocrata, machista, mantenedor de privilégios, branco, classicista. Acredito que no livro eu descrevo com muita minúcia esse cara branco, escritor, publicado, traduzido, resenhado, miserável, deprimido, escroto, machista. Esse personagem está em crise, ele não tem mais espaço neste mundo; esse personagem precisa morrer, não dá mais para ser assim. É um sujeito patético”. Aqui, podemos pensar na morte do autor com um viés de alargamento social. Não é só desaparecer através da escrita, torna-se outros, intertextualidade e la nave va. Trata-se de sumir com o monstro público, o alguém dominante que já não funciona mais. Mas seria a morte suficiente para zerar o sistema? Existem poucas certezas nessa ideia, porém, no instante em que a destruição é o começo de uma história, as linhas de acesso às margens são sim, mais claras e verossímeis.