flip entrevista

“Realismo oblíquo” parece um bom termo para falar das ficções de Marcílio França Castro (até por ser uma sugestão do escritor mineiro). É esse ponto de vista fora da curva, a divertir, intrigar e mesmo confundir o leitor, que marca suas recém-lançadas Histórias naturais (Companhia das Letras). Mais do que um tema, junta-se a esse olhar a forma breve, sem compromisso de ser conto, mas de ser pertinente a esse tempo e ao texto em si.

Na entrevista a seguir, o autor de A casa dos outros (7Letras, 2009) e Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse (7Letras, 2011, vencedor do prêmio da Fundação Biblioteca Nacional) fala sobre seu processo de criação, renovação na escrita literária e o desafio que o panorama político coloca à literatura. Um dos destaques da programação da Flip este ano, ele conversa exclusivamente com o Pernambuco.

Por Histórias naturais desfila uma variedade de ideias, personagens, pontos de vista e enredos, ao mesmo tempo banais e surpreendentes. Onde se escondem essas histórias, como as encontra?

Essa diversidade decorre em parte da própria proposta do livro, que tem um viés enciclopédico e funciona como uma espécie de compêndio, ainda que de forma desembaraçada, casual. É, pois, deliberada a intenção de explorar vários temas e objetos – sempre com um olhar atravessado, um recorte que tenta fugir ao convencional. As histórias que aí estão provêm de toda parte, de incidentes da vida ou dos livros, e nisso não há nenhuma novidade. Capturá-las é, antes de mais nada, uma questão de atenção ao mundo, de percepção. Por outro lado, cada uma delas é também o resultado de muita pesquisa, de muita escavação e costura, e, às vezes, de uma perseguição suada (nesse quesito, a internet como ferramenta de pesquisa é fundamental). Se há, porém, um aspecto a ser realçado, um traço que aproxima essas ficções em sua multiplicidade, eu diria que é o ponto de vista − a visão deslocada que, em alguma medida, se impõe como condição da narrativa ou do relato. Acho que esse foi o ponto-chave para mim, a descoberta necessária. Dou um exemplo. Sabe-se que Balzac era um grande endividado, e que ele pagava dívidas escrevendo. Mas a ideia de que ele deixaria de escrever se quitasse suas dívidas é um modo inusitado de encarar o fato. Aí está o pretexto, o ponto de partida para a ficção, que no livro se desenrola sob a ótica de um escrevente de cartório, que também vive às voltas com dívidas. Esse mecanismo desviante, que altera a lógica presumida das coisas, está presente na maioria das ficções do livro. Como o próprio título sugere, as Histórias naturais estabelecem um jogo irônico com a ideia de realismo, de ciência, e vão perturbar o campo das expectativas, as fórmulas pré-concebidas, as acomodações. Essa perspectiva torta, enviesada, é que abre a fenda para as histórias. Elas se apresentam estranhas, improváveis, mas não são fantásticas. Gosto de pensar na hipótese de um realismo oblíquo.

O livro se apresenta como um conjunto de “ficções”, não de contos. Começo, meio e fim parecem dar lugar a lacunas e iminências. Considera modelos clássicos insuficientes para escrever hoje?

O conto, de um modo geral, evoca a ideia de uma história condensada, que costuma ter personagens e enredo, e que mantém um segredo, o fio invisível que prende o leitor. Ainda que as possibilidades sejam inúmeras, há um certo modelo embutido aí, uma fórmula que, na literatura contemporânea, acaba sendo precária para designar as invenções mais ariscas, muitas vezes sem história, sem personagens. O termo conto, assim, pode dar uma ideia equivocada de certos textos, o que em algum nível também fere a sua recepção. Trata-se de um dilema classificatório, mas que está no cerne da literatura atual: é uma questão para os teóricos, os editores e os bibliotecários, e para os próprios escritores. Quando penso em escrever um texto, uma ficção, agrada-me não saber, ou não determinar de antemão, a forma que se desenhará no final. Pois o que torna uma ficção realizável como texto (ou um texto realizável com ficção) é exatamente a liberdade de encontrar a sua forma. As duas coisas sempre andam juntas. Descolada da ideia comum do conto, a escrita pode conduzir a algo como o comentário, o aforismo, a fábula, pode aparentar-se com uma reportagem, um conjunto de notas, um ensaio, e mesmo um epitáfio ou um escólio. Essa plasticidade, essa insubordinação faz parte, sim, de uma engrenagem contemporânea, mas não constitui novidade. Kafka, por exemplo, produziu textos que são verdadeiras setas de fuga; Borges flertou o tempo todo com os ensaios, as resenhas, as notas de rodapé. Na Antiguidade, foram feitos compêndios, compilações de mitos e fábulas que poderiam muito bem entrar no rol das ficções inclassificáveis. O cenário atual parece alçá-los de volta à luz. Hoje, os textos circulam mais do que nunca, são a todo instante copiados, mutilados, misturados, reaproveitados. A rebelião dos gêneros, dos tipos de texto, parece começar aí. Em sua pergunta, você menciona a ideia de iminência – para mim, ela é fundamental. Ao escrever, talvez estejamos lidando sempre com a iminência das formas, ou com uma forma que é sempre iminência.

Aliás, a mesa da qual você participa na Flip anuncia um autor que renova a literatura latino-americana. É uma preocupação ou intenção sua essa renovação?

A força do que escrevemos, a potência renovadora de um autor em relação aos seus antecessores, é dada pela leitura e pelo tempo. Não sei exatamente em que medida consigo fazer isso, mas é certo que de algum modo tento injetar uma dose de ousadia e inconformidade nas coisas que escrevo. Acho importante abrir brechas, diferenças, o que não significa inventar a roda. Um escritor está sempre retomando e quebrando algo que já foi feito. Essa é uma busca autoral, sem a qual, me parece, não há muito sentido em prosseguir. Afinal, a melhor homenagem que podemos prestar aos gênios literários do passado é escrever fora de sua sombra, ou mesmo contra ela.

Entre os personagens, um ator se prende aos tempos do teatro e é ultrapassado pela TV; um datilógrafo argumenta a favor da máquina de escrever; um homem faz o elogio do jogo de futebol narrado no rádio. Por que esse registro do modo como as coisas eram feitas e da busca pelo passado?

Nasci em 1967 e estou prestes a completar 49 anos. Escrevi cartas, usei máquina de escrever, colecionei mapas de papel. Estudei muito rodapé de gramática, tenho vários caderninhos e lápis, e ainda faço inúmeras notas manuscritas. Todo esse aparato moderno, analógico, concreto, está, como sabemos, desaparecendo ou em vias de desaparecer. Nem estou falando do livro-objeto, que está na berlinda, mas resiste e resistirá, porque não conseguiram superar sua amável tecnologia. Mas o fato principal, arrasador, que atinge de modo mais sensível a todos os que já passaram dos quarenta anos, é a mudança radical que vem ocorrendo no nosso regime de leitura e de escrita. Não se trata de uma mudança qualquer, não é apenas aquele hiato natural entre uma geração e outra, que se dá de forma incessante e sempre machuca os mais apegados ao passado. Trata-se de uma ruptura em escala milenar, puxada pela internet, pela memória monstruosa que vem com a internet, e pelas tecnologias do mundo virtual. Se a carta desapareceu, com ela desapareceu o tempo e a lição da espera, o amor da caligrafia. O jornal que levamos para a cama, soltando tinta, está com os dias contados, se é que já não acabou. Nessa onda, acho que vai embora também um tipo de subjetividade laboriosa, lenta, que é parte da minha formação. Por outro lado, um novo teatro esta aí, um jogo de personagens e personas, ágil, múltiplo, às vezes débil, com uma exigência de encenação sem precedentes, na comunicação virtual, nos e-mails, nas redes sociais. E tudo isso em apenas vinte ou trinta anos. Bem, o ponto a que quero chegar é que, por sorte ou desgraça, encontro-me exatamente no centro dessa revolução, e posso olhar simultaneamente para duas eras distintas − sou sensível a ambas. Essa condição afeta em cheio a minha literatura, os meus interesses e dúvidas como escritor. Em certa medida, meu aprendizado é já ruína e também fantasma, é um caldo de resíduos. Eu poderia traduzir tal situação como um fracasso, mas encaro-a como um privilégio. Porque é exatamente a partir dessa experiência, da consciência ainda pulsante desse tempo, que posso lançar um olhar crítico sobre o mundo que chega. Essa força indagatória, analítica, imaginativa, aparece em alguns de meus personagens, e, acho, é uma espécie de âncora da minha ficção. O conto "Roteiro para duas mãos", creio, é o melhor exemplo disso. Alex Fraga é datilógrafo de um tribunal desde o início dos anos oitenta. Ele vive o auge da máquina e testemunha o seu fim, o aparecimento do computador. Mas é também um dublê de escritores no cinema, empresta as suas mãos para os filmes. E nessa trilha ele revisita um século de metamorfoses da escrita e da leitura. O mundo em ruínas me interessa muito.

Como lida com o acesso e o excesso de hoje – de imagens, informações e narrativas?

Pensando, por outro lado, nos recursos e fontes que utilizo para escrever, tendo a achar que o Histórias naturais, pela garimpagem fina que fiz, por toda a informação miúda que usei nele, simplesmente não existiria sem o acesso à internet. Trata-se de um livro da era da internet, escrito porém com o afeto de um século que se distancia. Pelo menos é essa a minha sensação. E, se você me pergunta como lido com todo o excesso, com a saturação de arquivos, de memória, tendo a buscar a resposta, pelo menos de passagem, nas formas breves. Para mim, e aqui me lembro das teses de Calvino para o milênio, creio que está na forma breve uma chave possível para construir narrativas que sejam ao mesmo tempo leves e consistentes, velozes e lúcidas, que aproveitem a multiplicidade sem serem dragadas por ela.

Alguns brincam sobre a dificuldade que o atual momento do país colocará aos historiadores. E aos escritores? Que desafio esse cenário coloca para vocês?

A grande vantagem da literatura é não ter nenhuma finalidade prática. Por isso ela acaba tendo os efeitos mais preciosos. Um romance, um poema, uma ficção bem urdida, esses artefatos ao mesmo tempo singelos e selvagens refrescam as ideias, deslocam pontos de vista, emprestam ao leitor sensações e poderes inesperados; dão-lhe papéis que são do outro. Assim, os escritores produzem esse remédio casual contra a falta de imaginação, contra a paralisia, a feiura, a pieguice. Se o leitor for tenaz, pode fruir aí um pouco do teatro do mundo, brincar, pode começar a perceber por conta própria quando uma farsa é bem realizada, quando é vulgar, pode flagrar os atores ruins, denunciá-los, pode até descobrir, subitamente, erguendo a cabeça do livro, que está diante de um golpe.