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Nestes tempos absurdos, os quais costumamos chamar de "contemporâneo", a construção do eu na literatura parece afastar-se mesmo, por completo, da máxima descartiana de “substância”. No presente, o sujeito inscrito é todo identidade versus desejo, como afirmou Lacan – a partir desse embate, a verdade está em constante conflito; o real é interpelado, com tamanha petulância, pelo eu. De repente, estamos diante de Karl Ove Knausgård. A presença do escritor norueguês é como um reluzente, esguio, gigante iceberg visto de longe – alto, olhos azuis quase cinzas, cabelos grisalhos, feição tranquila e comum, porém tão perturbadora em sua normalidade impávida. Ambos são alterações de qualquer coisa anterior, tão antiga, primitiva: o colossal pedaço de gelo é uma ideia corrompida da água; Knausgård é uma representação (sensata e, ao mesmo tempo, incômoda) do homem – sempre bárbaro, sempre incerto.

Um dos nomes mais celebrados da décima quarta edição da Flip, Knausgård conversou com jornalistas que lotaram a sua coletiva, concedida na tarde desta quinta-feira (30). Para além das questões memorialistas e autobiográficas de sua escrita, o norueguês falou sobre futebol, família, jardinagem. Estávamos em diálogo aberto com o popstar da literatura contemporânea ocidental, mas, ainda assim, ouvíamos a sua voz narrativa, completamente disposta à autodestruição, ressoando em nossas cabeças. “Diferente do cinema e de outras artes, a literatura nos faz obedecer a uma voz distante”, afirmou. Sim, penso, e parece que continuamos a vivenciar essa obediência apesar das páginas já não existirem, de estarmos em uma nova longitude no mapa, da distância entre eu e aquele escritor branco europeu ser ínfima.

Enquanto ouvia Knausgård declarar a importância dos relacionamentos afetivos na vida de todos nós, lembrei de uma das conversas que o norueguês descreve em Um outro amor, volume dois da sequência Minha luta. Geir, talvez o seu melhor amigo, afirma que Knausgård é uma figura santa, que demonstra inocência e pureza. Ele continua dissertando como a santidade é o oposto do moderno, o que nos leva ao paradoxo contínuo e, por vezes, intrigante do personagem Karl Ove. Ali, naquela sala, aconteceu o aniquilamento desse narrador. “A questão da linguagem é atingir o leitor. Escrevo sobre o cotidiano e em estrutura direta. O que importa é: eu consigo falar do meu coração para o coração do leitor, não me incomoda que seja clichê”, me respondeu o escritor quando questionei a estrutura simples e direta de seu texto. No instante em que a imagem guiada pela "voz distante" sofre esses tipos de mutações, temos o universo ficcional, enfim, destituído de seu poder supremo. Permanece, portanto, a ruína desse eu que desliza por tantos escritos contemporâneos. Alguém cuja singularidade é ponto central, como nos diz Lacan. Ou, ainda, um sujeito – a princípio – inatingível como os fiordes do extremo norte europeu, mas todo ele tão simples em sua forma e composição figurativa.