De acordo com Wolfgang Iser, importante teórico alemão do século 20, é por meio da ficcionalização que nós todos estamos implicados à vida e, ao mesmo tempo, apartados dela. Ali, na performance de transgredir a realidade, ocupamos um lugar questionador, um lugar no meio de dois – é na fenda que se encontra, sempre, a possibilidade de subversão. Podemos pensar a figura de Ana C., homenageada desta décima quarta edição da Flip, como o corpo de uma fissura na história da poesia brasileira.
Após a segunda mesa do evento, intitulada A teus pés – composta pelas poetas Marília Garcia, Laura Liuzzi e Annita Malufe – fica a pergunta: Quando vamos, enfim, alcançar por inteiro essa fresta-Ana C.? Ou ainda: Por que parece tão difícil ocupar o espaço-desvio deixado pela poeta carioca?
Existe um discurso tangencial sobre a obra de Ana C. que circula por Paraty nestes dias de inverno do hemisfério sul. Algo ainda precisa ser quebrado, a ferida necessita de exposição. “Ana apaga a luz do poema. O leitor de seus escritos lida com um jogo de aproximação e distanciamento”, afirmou Liuzzi.
Celebremos, sim, a ideia de ausência nos escritos da carioca, mas não em seu corpo. Alguém precisa esbravejar, urgente, a presença de Ana C. por aqui. “Não vamos colocá-la na posição de mito”, disse Malufe, enquanto lembrava da “voz singular” de Ana. Mas que singularidade é essa? Onde, afinal, está Ana C.? O não-dito de sua poesia soa quase como desculpa para o não-dizer quem foi esta mulher – suas angústias, sua bissexualidade, sua política, seu suicídio.
O momento mais necessário da manhã ficou posto, ironicamente, quando um homem veio à tona: versos de Michel Temer, presidente interino da República, foram lidos por Liuzzi, que comentou de maneira bem-humorada, porém, incisiva: “Acho que vocês devem ter notado que é um poema (Por quê?, presente no livro Anônima intimidade) bem ruim. Falta muita poesia. A legitimidade do Temer como poeta é diretamente proporcional à legitimidade dele como presidente”. O posicionamento político da poeta, de extrema importância, deveria ser o comum e não o estranho, a novidade. Aqui, deixo um lembrete: todo o brilho da estranheza, até o próximo domingo (3), aplica-se à Ana Cristina Cesar.
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