ilustra Castello nov23

Estou diante da página em branco. Preciso começar a escrever, mas não consigo começar. As palavras, animais indóceis, me fogem. Algo me bloqueia o caminho. Tento, esboço pensamentos, avanço muito pouco, logo desisto. A página em branco, como um grande deserto, continua a se impor. A brilhar na minha frente. A me cegar. Até que me dou conta: falta a chave que me faz escrever. Um pequeno segredo, algo que inventei em um passado remoto. Um detalhe, mas que sempre me empurra.

Nunca começo a escrever sem digitar no alto da página em branco a palavra Nada. Preciso desse Nada, dessa afirmação do vazio e da inexistência, desse deserto, para que alguma coisa enfim se escreva. Sem o Nada, as palavras perdem o chão e simplesmente não brotam. A escrita não surge. É preciso que haja Nada para que alguma coisa apareça.

Pensando nesse Nada sem o qual não consigo viver, me vem à mente O tempo passa — a segunda parte de Viagem ao farol, o romance que Virginia Woolf publicou em 1927. Acabo de relê-lo. É um livro que não consigo abandonar. Conta a história da Sra. Ramsay e sua família. Ainda pequeno, James Ramsay, um de seus oito filhos, planeja uma viagem de barco ao farol. Essa ilha — esse farol — é um destino (um Nada) que ele nunca alcançará. Mas que, ainda assim, move a escrita de Virginia.

A Sra. Ramsay fica pelo caminho — muitos anos depois, tem uma morte súbita em Londres. James Ramsay já não existe mais. A família voltou para a capital. Agora, a Sra. McNab, uma faxineira cansada, varre a casa vazia. O telhado despenca, as janelas entortam, aves fazem seus ninhos nos lustres. Arrastando sua vassoura, a Sra. McNab se pergunta por que tanto esforço para limpar uma casa que desmorona. Está diante do Nada — está dentro do Nada. Mas é o Nada que a leva a faxinar, assim como é o Nada que me faz escrever.

Acho que entendo as dúvidas da Sra. McNab. Pouco depois que minha mãe faleceu, em 2015, seu velho apartamento em Copacabana, onde eu mesmo nasci e me criei, foi vendido. Tenho o hábito secreto de ir até a Rua Domingos Ferreira e, postado na calçada defronte, admirar as janelas do segundo andar onde minha mãe se debruçava para tomar sol. E onde eu mesmo sonhava com um futuro que não conseguia ver. Muitas vezes, tenho vontade de subir ao segundo andar, tocar a campainha do 201 e pedir para visitar o apartamento. Mas a ideia, ao mesmo tempo que me atiça, me causa repulsa. Tenho medo de ver o apartamento tomado por um presente que já não me pertence. Tenho medo de encarar a verdade.

Se tivesse certeza de que ainda o encontraria vazio — despido da história, entregue a um tempo que se perdeu — eu tentaria visitá-lo. Se soubesse que ele me espera como a casa dos Ramsay, onde a velha Sra. McNab varre o chão e resmunga, não o deixaria escapar. Mas não. Uma nova família o habita. O passado — o Nada — foi engolido por um presente que já não me pertence. Um presente alheio. Melhor ficar só na calçada diante do prédio, admirar de longe as janelas e preencher com a imaginação — com a ficção — um passado que já não existe.

Viagem ao farol é um romance sobre o tempo e o modo como ele não só custa a passar, mas como se imobiliza nas pequenas coisas. Como gruda e persiste nos detalhes que compõem a vida. “A casa estava abandonada como o casco de um animal perdido numa duna, e que se enche de areia depois que a vida se vai”, Virginia descreve. Na parte final, já depois da morte de James, seu pai, o Sr. Ramsay, um escritor sempre tomado pela dúvida, faz a viagem de barco ao farol que o filho nunca conseguiu fazer. Tenta, enfim, cumprir o sonho de seu filho, mas um sonho que já não é seu não pode funcionar. O Nada, mais uma vez, se impõe. A vida continua a ser o casco de um animal perdido na areia. E mais nada.

Há uma tristeza profunda nesse naufrágio de um tempo — que, lançado para trás, se congela como passado, isto é, como pedra. Como areia. Contudo, e os escritores sabem disso: sem uma perda irreparável — sem um hiato, um branco, um grande deserto — não há lugar para que, enfim, a ficção se erga, se imponha e, desse modo, reinaugure a vida. O grande personagem do romance de Virgina Woolf é a casa vazia. Mesmo quando ela ainda está habitada e ruidosa, alguma coisa sem nome resiste à ação do tempo. Um Nada já lateja e se impõe.

Enquanto não abandona o ruído do mundo, enquanto não se eleva e flutua sobre ele como um pássaro perdido, um escritor não consegue escrever. É preciso se despregar do tempo para que o tempo, enfim, ressurja. Um presente falso — de ficção — mas, talvez por isso, por ser aberto e livre, mais denso que o próprio presente. Quando leio Viagem ao farol, sempre sou tomado por um sentimento de esperança. Alguma coisa — Nada — persiste para além das circunstâncias banais da vida, e é essa alguma coisa que dá sentido à própria vida.

Para Virginia Woolf, a ficção era uma questão de vida ou morte. Também quando se matou, com os bolsos cheios de pedra nas águas do rio Ouse, alguma coisa de ficcional persistia. Um teatro — uma resposta para a estupidez do tempo. Aqui eu ajo, Virginia parecia nos dizer enquanto afundava. Aqui sou dona de mim. Domino o enredo, dirijo a cena, e me torno também seu personagem. Aqui, onde invento, partindo do Nada que a vida se tornou, reafirmo minha presença.

Muitos escritores, sobretudo os mais jovens, se paralisam diante da página em branco. Exigem de si algo que as palavras não podem dar. Esperam palavras que, se não vierem do improvável, jamais chegarão. Escrever exige a aceitação da dúvida. E, em especial, da cegueira. Só quando desistimos de ver, quando desistimos de dar um nome, a página em branco enfim, libertada, se move. Se move e fala. Sem atravessar o grande Nada que define a existência, nada somos.

Aqui me amparo em uma frase que Kafka anotou em seus diários: “Sou na verdade como uma ovelha perdida na noite e na montanha, ou uma ovelha que corre atrás daquela ovelha”. Estamos atrasados, há um deserto a atravessar, a cegueira bloqueia nosso caminho. E, no entanto, isso é a vida.