O acaso — com sua inconsequência, seus alçapões e seu ranger de dentes — faz cair em minhas mãos um antigo exemplar de O túnel, romance que o argentino Ernesto Sabato (1911-2011) publicou em 1948. Arrumava minha biblioteca, mexia na estante dos russos, procurava por um livro de Tchékhov, e eis que, de repente, o livro de Sabato aparece, ali onde não devia estar. Onde não devia estar, mas estava, e me arma uma cilada. Ele me empurra para meu passado mais remoto.
Comecei a ler O túnel, que é apenas três anos mais velho do que eu, ainda na juventude. Perdi a conta das vezes em que, maravilhado, o reli. Já dava o romance por lido, mas eis que ele mesmo rompe minhas expectativas e se oferece mais uma vez. Como um meteoro, cai diante de mim. Só posso aceitar. Penso em Sabato, que viveu uma existência cheia de cortes, talhos, lesões espirituais. Acostumou-se ao abrupto e ao imprevisível. Doutorou-se em Física, era admirado por seus pares, mas, aos trinta anos, abandonou a ciência para se tornar escritor. Muito mais tarde, outra ruptura inesperada o arrancou da literatura e o lançou na pintura. Foi um pintor dedicado durante quinze anos.
A vida de Ernesto Sabato é uma prova de que não somos nossos próprios senhores. Quantos Sabato existiram? A Física dá conta disso? Sonhamos, planejamos, realizamos — mas eis que, de repente, o caminho tramado nos leva em outra direção. Nossas escolhas se esfarelam. Nessas encruzilhadas, o melhor é ignorar o medo e agarrar aquilo que o destino nos deu. Foi o que Sabato fez. “Os sistemas são sistemas de tranquilidade, que amamos porque nos sentamos sobre eles. É uma forma de vivermos tranquilos, protegidos dos perigos e ciladas do Caos”, ele escreveu em Heterodoxia, livro de 1953. Mas nem os sistemas, nem as travas de segurança da razão nos protegem da vida. O chão que pulsa e lateja logo se rompe a nossos pés.
O próprio romance O túnel — que acaba de receber nova edição no Brasil, pela Editora Carambaia, em tradução de Sergio Molina — é uma prova viva disso. O plano inicial de Ernesto Sabato era escrever um relato metafísico. Contudo, quanto mais escrevia, ele descreveu mais tarde, mais a história descia do espiritual para o carnal, mais escapava de suas mãos. Amor, sexo, ciúme, crime se impuseram ali onde as questões metafísicas deviam estar. Aceitando a direção em que o acaso o empurrava, deixou-nos Sabato um romance brutal e humano. Também o protagonista do livro, Juan Pablo Castel, é um homem solitário, desamparado, escravo de seus impulsos. Quer uma coisa, mas faz outra. Logo no segundo capítulo do livro, ele se antecipa e nos avisa: “Existia uma pessoa que poderia me entender. Mas foi, justamente, a pessoa que matei”.
Castel é pintor. No Salão da Primavera de 1946, ele expõe uma tela chamada Maternidade. É um trabalho sólido e bem-acabado, em que tudo parece previsto e controlado. Nele a crítica reconhece equilíbrio e razão. No alto da tela, porém, há um detalhe imprevisto e dissonante: através de uma pequena janela, se vê uma praia solitária e uma mulher que fita o mar. Ninguém no salão dá importância à cena, ninguém a vê. Até que uma mulher, Maria Iribarne Hunter, nela se fixa. Permanece um longo tempo diante do quadro. Conserva o olhar dirigido à pequena janela, que os outros observadores ignoram. O invisível a atropela. E ela se detém.
Enquanto Maria Iribarne se deixa fascinar pela pequena janela, Castel, surpreso, abalado, a observa. Alguém conseguiu ver em seu quadro algo que, nem mesmo ele, o autor, valorizou. Nem mesmo ele, o pintor, chegou a ver ou, pelo menos, aceitou. Nesse momento, de um gesto inesperado, de um imprevisto banal, surge a paixão de Castel por Maria, sentimento obsessivo e inexplicável, que conduz à morte. Um homem observa uma mulher, que observa um quadro, em que uma mulher observa o mar. Nesse desdobramento, abre-se um abismo. Que traga Castel e passa a guiá-lo.
Ainda pensando em sua formação na Física Pura, Ernesto Sabato costumava dizer que o idioma não é érgon, mas energia. Em outras palavras: não é um produto feito e pronto, um objeto, mas algo em atividade, energia viva em transformação, que não se deixa pegar. “As categorias gramaticais, longe de serem a expressão de categorias lógicas, são apenas a petrificação de fatos psicológicos”. Escrever é dinamitar essa pedra, colocá-la em movimento, explodi-la. E, depois da explosão, tudo pode acontecer.
Também é isso, uma explosão, o que a paixão produz em um homem apático e solitário como Juan Pablo Castel. Também Sabato, escrevendo O túnel, descobriu — como disse Nietzsche — que a metafísica não está no céu, a metafísica está na rua. “O bem e o mal, a morte, o destino, não são problemas abstratos, pelo contrário, estão unidos à sorte do homem concreto.” Tropeçamos na metafísica não quando erguemos a vista para os céus, mas quando nos arrastamos pelas sarjetas e pelo chão. O homem carrega a metafísica em seu corpo. Dizendo melhor: só nele encarnada a metafísica existe.
Também eu me detenho a um canto de minha biblioteca, com o livro de Sabato na mão. Aquele livro não é só um calhamaço de papel, encoberto por uma capa decorativa. Não é um objeto pronto e morto — não é um cadáver. Ao vir até mim, ao surgir onde eu menos esperava, entre os russos, no lugar deles, o livro me veio trazido por energias caóticas, instáveis, disformes, que eu não posso ver, mas que existem.
A tragédia de Castel, que transformou o amor em crime, me leva a pensar na ambiguidade e nos perigos da própria ideia de transformação, que nem sempre — como nos habituamos a pensar — leva ao progresso e ao futuro. O impulso é uma força cega. Se leva ao movimento, dele pode sair tudo, desde a mais bela imagem ao mais terrível borrão. Sabato reconhece a inconstância do caos. A transformação não nos oferece garantias. Ao contrário, ela é justamente a falta de garantias. Não traz segurança, mas insegurança. Não aponta caminhos, mas os rompe.
Contudo, é quando nos aproximamos do caos que mais nos achegamos ao coração da vida. O mesmo livro que me serviu de lanterna e de luz poderia também me incendiar. E é sempre assim.