Riquixa Castello JanioSantos

Falamos da miséria, mas nunca sabemos verdadeiramente o que ela é e, tampouco, até onde pode chegar. Em 1901, com a dramaturgia Ralé, o escritor russo Máximo Górki tocou na fronteira de indignidade e do desespero que a definem. A peça de Górki se passa em um fétido porão, habitado por personagens que carregam em suas faces o horror da indigência e do desamparo. Meio século depois, em 1957, o cineasta japonês Akira Kurosawa a adaptou para o cinema. Para não esquecer da penúria em que o planeta foi lançado, não me canso de assistir ao perturbador filme de Kurosawa que, injustamente, não está entre seus mais populares.

Entre a peça de Górki e o filme de Kurosawa, no ano de 1937, o escritor chinês Lao She publicou mais uma narrativa corajosa: O garoto do riquixá, que leio na tradução brasileira de Márcia Schmaltz publicada pela Estação Liberdade. Lao She (1899-1966) é um dos mais importantes escritores chineses do século XX. Seu romance retrata a miséria – e as ilusões e armadilhas capitalistas que a sustentam – durante o período da China pré-revolucionária. Anos depois, em uma revirada da história, She veio a ser perseguido pela Revolução Cultural – movimento radical e irracional liderado por Mao Tsé-Tung de 1966 a 1976 – sob a acusação de “direitismo”. Foi, enfim, reabilitado pelo governo chinês em 1978. Hoje é lido nas escolas chinesas e unanimemente conhecido como um dos maiores escritores de seu país natal. E, posso dizer ainda, um dos grandes “profetas” do socialismo.

A linguagem de Lao She é límpida e transparente – e isso, de saída, me agrada muito. Sem meias voltas, ou disfarces técnicos, ele desvela os horrores de uma época em que a China ruía na desgraça e na qual as saídas estavam, quase sempre, infiltradas pela ilusão. O garoto do riquixá conta a história do jovem Xiangzi, conhecido como Camelo, que, sem outras opções, decide usar seu físico robusto para sobreviver, em Beijing, como puxador de riquixá, uma espécie de carroça de duas rodas. A lendária capital é, ao mesmo tempo, uma cidade feroz e hostil. Oferece muitas ilusões que terminam, necessariamente, não na vitória pessoal, ou na liberdade, mas na decadência e na morte. Embriagado pela ilusão de ter, um dia, seu próprio riquixá e, assim, tornar-se dono de si, Xiangzi se oferece para o serviço.

“A esperança nem sempre corresponde à realidade”, o narrador nos alerta logo nas primeiras páginas. Avançamos na leitura já avisados de que Xiangzi fracassará. De que o que temos nas mãos não é um conto de fadas, mas a história de sua derrota e de sua desgraça. Ainda assim, parece inacreditável, a princípio, que aquele rapaz tão determinado possa vir a perder. A determinação e o esforço pessoal, porém, não bastam. A luta de Xiangzi – do mesmo modo que a luta de todos os miseráveis que hoje se espalham pelo planeta – é regida pelo princípio da destruição. Lutará, lutará, queimará todas as suas energias e toda a sua resignação, mas isso será só um alimento para a morte.

De início, Xiangzi se sente feliz e corajoso. Vê-se quase como um herói invencível de quem, ao fim, ninguém ou nada roubará o triunfo. Acredita que, pelo caminho da exploração e da injustiça, ainda assim poderá vencer e se libertar. Ilude-se com as migalhas que o destino lhe oferece. Como um jovem vigoroso como ele, cheio de potência e vida, poderia ser derrotado? Aqui talvez tivesse sido útil se Xiangzi pudesse conhecer os infelizes que moram no porão de Górki. Pudesse assistir, nem que fosse por minutos, a algumas das cenas brutais do Ralé, de Kurosawa. O destino já está traçado: toda a sua luta o leva diretamente ao submundo e ao abandono. A vitória não passa de uma ilusão que lhe oferecem para que ele continue a batalhar.

Leio o romance de Lao She e me pergunto por que, em um mundo tão sofrido como o em que vivemos, a maior parte dos escritores parece ter pedido a força – ou a coragem – para avançar sobre o intolerável. E aqui, é preciso dizer, eu me incluo. A miséria que nos cerca é ostensiva, anda pelas ruas do Rio de Janeiro, ou de São Paulo, expõe-se. Ainda que usemos óculos escuros e nos agarremos a devaneios infantis, não podemos deixar de vê-la. A pobreza do presente nos esfaqueia. Sim, existem aqueles que se protegem com o escudo da arrogância, ou do egoísmo. Mas, ainda a eles, não posso deixar de pensar, ela chicoteia. Por que, então, nossa literatura, afora honrosas exceções, tem tantas dificuldades para capturar o que todos veem?

Há momentos em que Xiangzi acorda e se deixa iluminar por palavras como as proferidas pela ama Gao, para quem “tudo era ilusório, só o dinheiro era verdadeiro”. Trágica visão de açougueiro, na qual o mundo é reduzido a nacos de carne sangrenta a serem negociadas, mas que, ainda assim, parece reger a maioria das pessoas. Por vezes, como a maioria das pessoas também, o rapaz se agarra às ilusões do amor. Sua conflituada relação com a experiente Tigresa, filha de um patrão, em que a atração se mistura à repulsa e o amor ao ódio, ainda assim lhe serve como bengala, em uma realidade esburacada.

“De tão perdido que estava, começou a pensar pelo lado positivo”. O que se esconde sob essa opção pela cegueira feita por Xiangzi é simplesmente o medo. Se a realidade não oferece saídas virtuosas, como sujeitos desamparados que somos, precisamos pelo menos construir miragens. Cortinas que, ainda que rasgadas e fedorentas, diluam um pouco o horror do real. É ao que o rapaz se agarra. A vida, cada vez mais, se parece com o próprio riquixá que Xiangzi arrasta pelas ruas de Beijing: uma carroça precária e instável, a que nos agarramos só para seguir em frente e continuar a viver.

Por fim, ainda que fragilizado, o rapaz se sente triunfar sobre o velho Liu Si, o dono da Garagem Harmonia, para a qual entregou por tanto tempo seu suor e seu sangue. “O velho Liu Si tinha tudo e Xiangzi, nada”. Ainda assim, ele não era páreo para um trabalhador corajoso que, mesmo enfraquecido, lutava no dia a dia para sobreviver. E esse herói ferido era ele mesmo. Xiangzi começa, assim, a descobrir que a força está em outro lugar. Mesmo depauperado e triste, a força está nele mesmo. Descobrir isso não resolve nada, mas já é um primeiro passo para futuro.