Ilustra Castello VItorFugita

Em meio à tormenta das palavras – redes sociais, posts instantâneos, luta feroz de narrativas, palavrório sem fim – procuro um ponto de apoio. Um intervalo – um silêncio, um deserto – em que possa voltar a mim. Fugindo das palavras, contudo, é ainda às palavras que retorno. É nas próprias palavras, e não fora delas, que devo encontrar o que busco. Sei que estou preso à língua, e que dela não me livrarei, a não ser que prefira o inumano. É na língua, em suas arestas, pausas, furos, que encontro um caminho para o homem que sou.

Ainda pensando nisso, me cai nas mãos Aves dormindo enquanto flutuam, reunião de haikus do japonês Masaoka Shiki (1867-1902), em uma bela edição em capa dura da Assírio & Alvim, de Portugal, com tradução de Joaquim Palma. Ganhei de presente de um amigo que vive no Algarve. Um amigo com que compartilho a beleza, mas também a aflição de tanto falar. Quisera ser como as aves de Shiki, que dormem enquanto avançam pelo céu. Quisera respirar sem pensar que respiro, simplesmente encher os pulmões para esquecer de mim.

Tantos reclamam do frenesi que nos cerca. Eu mesmo reclamo. Ataque contínuo de ideias, de pedidos, de interrogações, que nos impedem de fechar os olhos e, como as aves de Masaoka Shiki, apenas ser. Penso em Franz Kafka que, desde Contemplação, seu pequeno livro esquecido, escrevia não para se agitar e para gritar, mas para deter-se e contemplar. Só parando, ele pensava, quebramos o gelo que guardamos no peito.

Poeta do período Meiji, na virada do século XX, Masaoka Shiki nunca negou sua dívida longínqua com Bashô (1644-1694), o poeta mais famoso de período Edo, que ele desde cedo elegeu – porque ancestrais devem ser eleitos – como seu grande e oculto pai. Ambos exercitaram a arte de observar em silêncio, não em busca das grandes paisagens e revelações, mas na perseguição dos detalhes, dos restos, das sombras sinuosas que desenham o real.

“Livros de poesia pelo chão/ e eu no meio deles/ a dormir a sesta”, escreve Shiki. Nenhuma reverência, nenhuma luta ou atrito, só acolhimento. A poesia como um espaço de aceitação, a que o poeta se entrega despreocupado com os ganhos e com as vantagens. Espaço inútil em que o que interessa – como nas aves que dormem enquanto flutuam – é a introspecção e o retorno a si.

Há, no interior da cultura contemporânea, uma feroz luta de prestígio e de conquista. Um desejo de domínio – de espaços, de argumentos – que transforma o poeta, frequentemente, em um grande falador. Shiki, ao contrário, faz uma poesia que se oferece como leito. Nada quer dizer, nada deseja, só acolhe. A poesia como um ponto de atração em torno do qual as palavras giram e, em uma dança suave, se amansam. Ele escreve: “Nessa noite de luar/ os gansos voam baixo/ sobre a linha do comboio”.

É sempre em silêncio que o poeta acolhe as delicadezas do real. Há, sim, uma sincronia entre o voo dos gansos e a linha esfumaçada do trem. Mas quem a vê? Quem lhe dá valor? Na correria, mal paramos para nos ver. Ainda mais difícil que fazer poesia, Shiki nos mostra, é chegar a deter as mensagens que se ocultam no ar.

“Mesmo doente/ não deixei de ir ao jardim/ enterrar algumas sementes”, ele escreve. Uma confidência: é também em um leito de hospital que, lutando para suportar a agitação em torno, me abrigo nos haikus de Shiki, que me chegaram em boa hora. Mesmo aqui, sem forças, preso a uma cama, a poesia me permite voar para longe e desenhar alguma esperança.

“Ah este pássaro/ de que não sei o nome/ e a luz iluminando o pó no ar!”. A sabedoria de um poeta, Masaoka Shiki nos aponta, está na capacidade de suportar a ignorância e de ver a beleza ali mesmo onde ela não pode ser nomeada. A luz ilumina o pó – a ninharia, o farelo, o nada. A luz permite que, mesmo sem chegar a dar um nome, o leitor possa enfim ver aquilo que não está habituado a ver. Possa ousar ver.

Ao lado de minha cama de hospital, há uma janela, que dá para uma parede branca. “Esta é uma velha estrada/ ladeada de árvores despidas/ onde nem sequer os cavalos passam”, escreve Shiki. Só de olhos fechados, imerso em um sono milenar, o leitor vê o desprezado. Só em um leito de hospital, onde tudo é asséptico e funcional, um leitor encontra brechas para acessar o inatingível. Só naquela reclusão chega a vislumbrar – mesmo entregue ao sono profundo e de olhos fechados – “O vasto mar de outono/ dez passos/ para além da porta”. Um mar branco.

Há alguma coisa nas palavras que ultrapassa as palavras. Uma sensibilidade que abdica da afirmação, que despreza a convicção, que denega o saber. Nesse aspecto, o poeta se comporta como um monge que, sem nada desejar, se limita a devanear – a se arrastar ‒ sobre o real. Ainda ouvimos o rastejar de seu manto. É delicado e rouco.

Os poemas de Masaoka Shiki me ajudam a atravessar meu próprio deserto. Eles me fazem acreditar que, muito além do que sei, se guarda a parte mais delicada do real. Ainda inebriado pelos versos de Shiki, me volta uma anotação de Franz Kafka em seu diário: “Ontem, incapaz de escrever uma palavra sequer. Hoje não foi melhor. Quem me salva? E não ser capaz de ver o tumulto que há no fundo de mim. Sou como uma grade viva, uma grade que está presa e quer cair”.

Ocorre-me que, nesses momentos, também a Kafka, que nunca leu Masaoka Shiki, faltou a capacidade de flutuar. Uma grade o prendia – como uma gaiola a uma ave frágil. Ali detido, girava com as palavras sem conseguir alçar seu voo. Retorno, paciente, a Shiki: “Começou a chover/ e todos os insetos na gaiola/ desataram a chorar”. Também Kafka, como um inseto – uma barata – chora. Está preso a seu próprio rebanho de sombras.

Os haikus de Masaoka Shiki me amparam e me salvam, lançando-me em um estado fronteiriço entre a atenção frenética e a meditação desinteressada. Um vão onde, enfim, posso respirar sem nada aspirar. Eles me ensinam a desistir das palavras para que, por fim, elas me elevem e me façam flutuar. Escreve o poeta: “Deponho o fardo/ de todos os dias/ e durmo uma sesta”. É só no sono das aves, é só de olhos bem fechados, que enfim posso acreditar no que vejo.