Ilustra CastelloLauraMorgado

Embarco em um voo do Rio de Janeiro para Manaus. Deram-me um péssimo assento: estou em uma poltrona do meio, espremido entre um sujeito imenso – que, na juventude, talvez tenha jogado basquete – e uma senhora idosa e trêmula, que murmura o que parece ser uma oração.

O voo está lotado. As comissárias se desdobram para acomodar as malas. Duas mulheres chegam, carregando sacolas de butique, que tentam acomodar, à força, nos bagageiros. Aos trancos, arranjam espaço. Soltando risadas de hienas, tomam seus assentos. Na fila do corredor, logo se acomoda um sacerdote.

As mulheres dão risadas obscenas, enquanto o padre, rígido e indisposto, pigarreia. “Preciso lhe mostrar meus brincos novos”, a que está na janela diz. Ergue-se, espreme as pernas da amiga, passa, mas é detida pelos joelhos sagrados do sacerdote. Como vê que o padre não se mexe, ela os empurra.

De pé no corredor, passa a descer as sacolas e a procurar seus brincos. Os passageiros a observam em pânico. Um comissário avisa que o embarque está encerrado. A mulher não se abala. Até que, duas ou três fileiras às nossas costas, uma cantora famosa se levanta e, com as mãos nos quadris, berra: “Oh perua, você não vê que o avião vai decolar?”

Há murmúrios, que se misturam a risadas, mas também a palavrões. Humilhada, a mulher das sacolas as espreme de volta no bagageiro e, quase chutando os joelhos do sacerdote, volta a se sentar. É nesse momento que, sem saber onde me meter, me lembro do livro que trago na bagagem de mão. Não viajo de avião sem um livro. Não preciso de amuletos, ou de orações, um livro me basta. A caminho do Amazonas, trago comigo Da arte das armadilhas, poemas da mineira Ana Martins Marques.

Quando o sentimento de prisão se adensa e me vejo detido em um alçapão, a avidez pelas palavras aumenta. O efeito é imediato. Aberto o livro, já não estou mais em um avião, mas dentro dos poemas. Pode haver turbulência, tempestade, brigas fúteis entre passageiros, nada me atinge. As palavras se erguem para me proteger do mundo. Em seu interior, eu me escondo.

Abro ao acaso no poema Cinema, versos breves que se alojam na página 53. Logo as palavras me alçam em uma recordação. Nasci em 1951. Minhas irmãs, Sandra e Angela, em 1952 e 1954. No ano de 1953, minha mãe engravidou, mas, por um motivo que desconheço, sofreu um aborto. Sempre me interrogo quem seria esse irmão, ou irmã, que se preparava para nascer, mas não nasceu. É justamente no hiato representado pelo número 53 que agora me detenho.

Em Cinema, o eu fala de uma fileira de cadeiras, arrancadas de um velho cinema, que encontrou em algum lugar e levou para casa. Eles (o eu está na primeira pessoa do plural) as acomodaram na varanda. Nelas, como se estivessem diante de uma tela, assistiam à vida passar. É de mim que o poema fala, é dentro do poema que estou. Também eu, em uma poltrona que não me pertence, assisto a “um dia qualquer” no interior de um avião. Também aqui, o número 53 carrega uma ausência – cadeiras arrancadas de um cinema, um irmão que nunca existiu.

Recuo até a página 51, referente ao ano em que nasci. De novo, encontro, dentro do livro, algo que me pertence. A essa altura já decolamos. Atravessamos nuvens escuras e o avião sacoleja. Em seu interior, silêncio e desamparo. Para esquecer que habitamos uma máquina, retorno ao poema. “Andamos juntos/ lado a lado/ mas sem nos tocar”. Os versos falam da posição intermediária que ocupo, espremido entre o jogador de basquete e a velha que resmunga. Nossos ombros se tocam, se chocam a cada trepidação, mas nos ignoramos.

Existe sempre alguma coisa “entre” as pessoas, ainda que “entre” dois passageiros vizinhos ‒ eu anoto às margens do livro de Ana. Se ergo a vista, um desamparo difuso me toma. Se volto à letra do poema, consigo respirar. Se abandono os versos e olho em torno, tenho vontade de fugir. Mas não há como fugir de um avião. “tantas vezes/ ensaiamos a partida// mas nunca fomos bons/ de despedida”. Resta aceitar. “Posso lhe fazer um pedido estranho?”, o brutamontes do basquete me diz. Noto que está pálido. O gigante musculoso também sente medo. “Claro que sim”, eu digo

“É muita ousadia, é muito ridículo, eu lhe pedir que o senhor me dê a mão enquanto o avião não se acalma?”, ele me diz. Meu silêncio o leva a completar: “Não entenda errado, por favor”. Lado a lado, ombro a ombro, ainda assim existe um abismo entre nós. Não posso compreender o que ele sente. Mas ele sente. “Fique à vontade”, digo, esticando o braço. A mão fria e suada se agarra à minha. O sujeito fecha os olhos, mas não é de prazer, ou de ternura, é de pavor. Por delicadeza, deixo meu livro com as páginas abertas sobre nossas mãos. A poesia, mais uma vez, me protege.

Agora percebo que a velha senhora está atenta, e não só atenta, mas incomodada. Presencia um ato obsceno. O latejar de seus lábios se acelera, ela aprofunda a oração. Quanto mais o avião joga, maior o silêncio. Nessas horas extremas, as comissárias desaparecem e o piloto se cala. O jogador de basquete aperta, ainda com mais força, minha mão. Mesmo que eu decidisse isso, não conseguiria soltá-la.

Volto ao livro de Ana e chego, por acaso, ao Poema de amor. Uma ironia: devia se chamar Poema de pavor, penso. Está escrito: “e não devo dizer/ que o amor é uma doença/ uma doença do pensamento/ uma desordem que põe tudo o mais/ em desordem”. Espremendo meus dedos, a mão musculosa do jogador não o desorganiza, ao contrário, o protege. Talvez ele não passe de um menino e eu cumpra o papel de pai. Talvez o sacerdote que acolhe e consola seja eu. Impossível entender o que as pessoas fazem umas das outras.

O avião, enfim, se estabiliza. O grandalhão me solta as mãos. A mulher das sacolas se levanta de novo, espremendo os joelhos sagrados do padre. “Agora sim, achei meus brincos”, ela grita. Talvez as sacolas sejam para ela o mesmo que os livros são para mim. Escudos que nos protegem do imprevisível. E que impedem que vejamos nossas imagens horríveis de humanos. Mais uma vez, um livro me salva. Salva-me de mim mesmo. Obrigado, Ana.