O editor de uma revista paulista me encomenda uma longa – e “definitiva”, ele enfatiza – entrevista com Gal Costa. Estamos na década de 1980. Acabei de fazer 30 anos. Não sei se estou pronto para a tarefa. Cheio de dúvidas, aceito o trabalho.
Agora que, 40 anos depois, Gal Costa nos deixou, a memória da entrevista me reaparece em um clarão. Tivemos quatro encontros de trabalho. Teriam sido conversas inesquecíveis. Foram inesquecíveis, mas, ao lado do fascínio, elas me voltam, ainda, como momentos de terror e de aflição.
Não eram algemas que me prendiam, mas uma pauta. Uma lista imperativa de perguntas que, em vez de descerrar caminhos e dúvidas, já traziam, dentro de si, respostas prontas. “Temos que levá-la a dizer que...” – uma das perguntas me instruía. Esboçavam um interrogatório, e não um diálogo.
Chego a pensar em desistir. Contudo, eu precisava de dinheiro. Em má-hora, aceito a tarefa. Reli, com medo e fervor, minha lista de perguntas. Tratavam de temas diversos. Entre eles, como um diamante venenoso, um se destacava: eu deveria interrogar a cantora sobre uma suposta relação amorosa com Pelé.
Nos bastidores da imprensa, havia um boato insistente sobre o assunto. Tanto Gal quanto Pelé já o haviam desmentido, com ênfase. O que os fofoqueiros viam como um romance era, na verdade, uma amizade. Mas – julgavam os editores da revista – era preciso teimar. Revelar a “verdade” negada. Eu sabia: não se tratava de um desvelamento, mas de uma construção.
Chego, pela primeira vez, à casa de Gal Costa, na Barra da Tijuca. Assim que entro, me deparo com a imensa boca vermelha que ela mandara desenhar no fundo de sua piscina. Uma voz interior, que parece emitida pela boca gritante, me azucrina: “Não é correto o que estou fazendo”. Eu sabia que a entrevista carregava em seu coração um motivo secreto e odioso: o gozo com o escândalo.
Minha miserável entrevista só teria valor se, enfim, eu levasse Gal Costa – com a mesma indiferença com que um verdugo conduz seu condenado – a falar sobre algo que ela preferia calar. A pauta me sugeria a postura de um policial. Talvez de um torturador.
No fundo da piscina, a imensa boca continua a me advertir: “Desista enquanto é tempo”. Contudo, eu estou ali para fazer aquela pergunta, e nenhuma outra. Depois de uma década na vida de repórter, quanto mais a boca se abre para gritar, uma verdade se impõe: eu tinha – e ainda hoje tenho – uma outra ideia a respeito do jornalismo.
O jornalismo deve ser uma aventura, não uma algema. Interessa não o que o repórter acha que sabe. O bom repórter não deve saber o que quer. Gal Costa me faz entrar. Já na sala de visitas, ela me olha com desamparo e confiança. Enquanto isso, eu decido: não, não chegarei ao assunto odioso que me trouxe até aqui. Não darei voltas, não fingirei, a entrevista não será uma cilada.
Nossa primeira conversa é lenta e suave. Não guarda o aspecto inquisidor que a imprensa, tantas vezes, cultiva. Entre nós, como testemunha, só meu velho gravador de fita cassete. Falamos de música, da Bahia, do tropicalismo. Não sou o guia e minha pauta não é uma coleira. Deixo-me levar pela fala doce de Gal.
Ainda assim, quando, dias depois, chego para a segunda entrevista, uma série de dúvidas me infernizam. Estarei sendo infiel à profissão que escolhi? Estarei sendo incompetente? Estarei com medo? Gal me recebe com um sorriso que logo me acalma. Fala de sua juventude, de seu casamento com a música, de sua luta para chegar a si. Sinto que está quase feliz. Quanto a mim, sou apenas um ser abjeto, penso.
Gal dá o melhor de si. Tímida, tenta sustentar o papel de celebridade e, ao mesmo tempo, dele se desvencilhar. Também ela oscila entre a glória e a verdade. Também ela está dividida. Como eu poderia traí-la?
A mesma atmosfera de cumplicidade se repete em nosso terceiro encontro. Escondida em algum escaninho de minha mente, a maldita pergunta, no entanto, ferve.
Sei que, apesar de tudo, meu editor me cobrará pela pergunta que não farei. Pois isso já está decidido: eu não farei. Me acusará de desrespeito ao “grande fato”. Talvez à “verdade”. Uma voz malévola me diz: “Não sou um repórter, sou um falsário”. A voz melodiosa de Gal Costa interrompe meus pensamentos: “Bem, parece que já esgotamos todos os assuntos”. Prossegue: “Agora você só volta aqui para um jantar. Eu mesma farei uma sopa de beterrabas. Você gosta?”
Será o dia, enfim, em que ela revidará e se vingará? Me servirá uma sopa envenenada? Será que, desde o início, ela sabe de tudo? Mas como poderia saber? Chego, trêmulo, para nosso encontro de despedida. “Ainda podemos conversar um pouco antes do jantar”, ela sugere. É agora, ou nunca. Será nunca, eu já decidi.
Contudo, no dia seguinte terei que voltar à redação com minha fita cassete vazia. Serei um traidor. Um incompetente. Então me surge uma ideia: e se eu contar tudo a Gal? Desligo o gravador. Tomo coragem e falo. Enquanto falo, ela me ouve perplexa. Depois de ouvir, me pergunta: “Por que você está me contando tudo isso? Por que me conta esse absurdo?”
Cheio de vergonha, digo que preciso de sua ajuda. É simples. Ligarei o gravador e farei a maldita pergunta. Com todas as letras, perguntarei por que ela insiste em esconder sua relação romântica com Pelé. Peço que, em seguida, ela não me poupe. Expresse tudo o que sente: o horror, a raiva, o asco. Depois poderemos jantar em paz. Voltarei à redação no dia seguinte com a maldita pergunta feita. E com a resposta de Gal, nauseada e verdadeira, para apresentar. É o que fazemos. Depois de feito, rimos muito juntos. Cumprimos o papel que esperam de nós. Gal, em nenhum momento, mentiu. Externou seu incômodo verdadeiro. No entanto, agora compreendia que eu era só um representante. Um intermediário entre a pergunta que eu jamais faria e a pergunta que, apesar de tudo, fiz.
Não preciso dizer que a entrevista jamais foi publicada. Gal não entregou à revista o tesouro que os editores esperavam. No lugar do tesouro, lhes deu, mais uma vez, a verdade. Eu também não deixei de cumprir o papel que esperavam de mim. O escândalo estava desmascarado.