Na primeira vez em que o vi, desgrenhado, roupas amassadas, jeito de garoto travesso, todos os meus mais tolos preconceitos vieram à tona. Eram os anos 1970. Eu assumia o escritório carioca da revista Istoé e ele, Timóteo Lopes, um gaúcho do Alegrete, fazia parte da equipe de repórteres que eu começava a comandar.
Com grande esforço, e certo de que perdia meu tempo, eu, o chefe esnobe em ascensão profissional, o chamei para uma conversa. Logo me incomodei com seu sorriso aberto, que me pareceu perigoso, e com sua franqueza, que me soou infantil e antiprofissional. A entrevista não durou mais que cinco minutos. Eu não sabia o que perguntar e ele, talvez por desleixo, talvez por timidez, parecia desinteressado em responder.
Quando Timóteo saiu de minha sala, não posso negar, senti alívio. Só muito depois compreendi que não era alívio, era medo. Medo de quê? Um sentimento dúbio, que se aproximava da curiosidade, mas também do embaraço, passou a me ligar, desde então, a ele. Lembro de seu comentário quando lhe comuniquei que decidira mantê-lo na equipe de reportagem: “Então está bem”, limitou-se a dizer. E me deu as costas.
Timóteo não via sua confirmação na equipe da revista, só depois eu entendi, como uma conquista pessoal, ou um avanço em sua carreira. Não via o mundo como uma escada que se ergue em ascensão inexorável ‒ como fazemos quando, preocupados com os elogios, com o sucesso e com as promoções salariais, encaramos a vida como uma escalada. Aceitava sua permanência na revista com certa resignação porque precisava do salário para sobreviver e era só. Não era uma carreira, ou uma montanha a galgar, era sempre uma solução provisória, a cujos benefícios ele era quase indiferente.
Aos poucos, e com grande relutância, comecei a admirar a pureza de seus textos e o modo despreocupado, quase debochado, com que lidava com os grandes temas jornalísticos. Naquele tempo, tive a sorte de ter comigo uma geração de grandes repórteres. Nela, Timóteo se destacava não porque brilhasse, embora fosse de fato brilhante, mas porque, ao contrário, enquanto todos buscavam as luzes e os sorrisos dos chefes, entre eles eu mesmo, ele fazia questão de se apagar.Aos poucos, aquele homem estranho, mas gentil, me fez entender que eu me enganara. Que as aparências, em particular a pose “profissional”, não passam de couraças sob as quais nos escondemos. E que a simplicidade, mesmo quando quase desleixada, é muito mais bela que a pompa, ou o brilho. Logo percebi, também, que todos na redação o adoravam. Uma adoração feita não de reverência e temor, mas de desarmamento e ternura.
Tornamo-nos amigos, eu, sempre esgotado e em crise com o peso de minha função de chefia, e ele, a me acalmar com sua leveza e seu jeito quase negligente de lidar com o mundo do trabalho. Quando penso nesses tempos remotos, uma lembrança, em particular, sempre retorna.
Numa tarde abafada de verão, em que me sinto asfixiado pelas pressões do cargo, Timóteo, percebendo meu esgotamento, me convida para um café. É a primeira vez em que saímos juntos, cara a cara, fora dos domínios da redação, onde o papel de chefe, se me esgota, também me protege. “Tudo isso é uma piada”, ele diz, assim que nos acomodamos no fundo da confeitaria. “É só um teatro. A gente tem que fingir que leva a sério, mas não leva a sério, está sempre com a cabeça em outro lugar.”
Com essas palavras simples, mas diretas e até brutas, Timóteo me desarma. Mais que isso: me desmonta. Já não somos mais um chefe e seu repórter que tomam um café da tarde, agora somos dois homens perplexos diante de nossos destinos. Não sei o que dizer, a desconfiança me invade, a dúvida me sufoca. Percebendo minha tensão, ele avança: “Vamos dar um pulo em Niterói?”.
A redação da revista ficava no centro do Rio de Janeiro, não muito longe da Praça XV, de onde partem as barcas para o outro lado da baía. É fim de tarde, a redação, a essa hora, já começa a ferver, “Fazer o que em Niterói?”, pergunto. “Você enlouqueceu?”. Trabalhávamos em uma reportagem de capa. Ainda havia muito a investigar. Nenhum dos entrevistados morava em Niterói.
Timóteo sorri e me diz: “Esquece essas coisas de reportagem”. Tenta me comandar, a mim, o chefe austero. Continua: “Você precisa ver o mar. O mar é imenso. Tem um ritmo lento, move-se mas não sai do lugar”. Uma mobilidade imóvel: seria disso que eu estava precisando? Ou, contrário, com essa imagem marinha, Timóteo queria me dizer que toda a agitação jornalística não passa de um pântano que borbulha?
“Vamos lá, pegamos a próxima barca, subimos para a varanda da proa e ficamos vendo as gaivotas”, ele receita. “Olhando as gaivotas, você vai entender que tudo isso que o amofina é uma bobagem.” Observo Timóteo e me pergunto se não estou diante de um louco. No mínimo: de um irresponsável. A carcaça de chefe ainda me cega.
Quando dou por mim, já estamos dentro de um táxi. Um pouco mais, e estamos na varanda superior da barca Arariboia, uma das mais antigas da frota. Ela apita com elegância e preguiça. Enfim, se move. O vento da baía começa a bater em meu rosto. Ao meu lado, quieto, Timóteo espreme os olhos. Parece prestes a dormir. Ou a chorar? Murmura, enfim, alguma coisa que não consigo entender. “Talvez fale sozinho”, eu penso, me valendo da maldade. Enfim, desperta, como alguém que acorda de um sonho, mas esqueceu o sonho.
“Você ainda está aí?”‒ ele me pergunta. “Claro que sim”, digo. Debocha: “Achei que não suportaria tanta beleza”. Entrega-se, de novo, à contemplação da paisagem. Esquece de mim, esquece de tudo, como se nem mesmo na barca ele estivesse mais. Ali eu entendo. Enquanto eu, o profissional em ascensão, vivo engaiolado em minhas angústias, ele, tão livre como as gaivotas, plaina sobre a rudeza do mundo. Não é só ali, no meio da Baía de Guanabara. Timóteo não habita o mundo, habita a si mesmo.
Timóteo Lopes faleceu em novembro de 2022. Acho que nunca consegui entendê-lo. Agora que esse homem invisível desapareceu para sempre, porém, sua imagem, fluida e doce, ofusca e aniquila grande parte de minhas ilusões.