Castello Rafael Olinto agosto.22

 

Meu apartamento está em obras. Hospedo-me no apartamento de um amigo, que passa uma temporada no exterior. Sinto-me bem. Tudo parece bem, mas nada está bem. Os primeiros sinais surgem quando, certa manhã, deparo com um cachorro ensanguentado na portaria do prédio. Dois homens o arrastam. O sangue pinga sobre o tapete azul.

Como ele se machucou”? – pergunto ao porteiro. Não me responde. Depois que os homens se afastam, limita-se a comentar: “É o cachorro do senhor Antero”.

Guardo o nome, Antero, que, para mim, remete a Antero de Quental e a seus poemas metafísicos. Mas o que tem a metafísica a ver com o sangue?

Dias depois, enquanto espero um táxi, duas senhoras entram no prédio. A mais velha, de peruca amarela, diz: “Você sabe que ele mantém o menino preso em casa”. A outra, espantada, pergunta: “Um adolescente? Como ele consegue? Ele o acorrenta”?

As mulheres se afastam e o silêncio toma conta do hall. Um silêncio aflito, de capela mortuária. Sem me olhar, o porteiro resmunga: “Não sei como o rapaz aguenta”. Quando lhe pergunto do que fala, é ríspido: “De nada, só pensei alto”. Não pôde disfarçar o medo.

Surge um vazamento na cozinha do apartamento e, como hóspede, devo tratar do conserto. Preciso procurar o síndico. O senhor Antero é o síndico. Recebe-me de robe, os cabelos molhados, pingando no chão. “O que o senhor quer”? – pergunta, enfezado. Explico que sou hóspede do 802 e que preciso tratar de um vazamento. “Problema seu”, ele diz. “Vem interromper meu banho com essa tolice?” Bate-me a porta na cara.

Resolvo o problema do vazamento, mas passo a temer o senhor Antero. Dias depois, volto a cruzar no elevador com a senhora de peruca amarela. Ela agora está acompanhada de um homem. Ignorando-me, comenta: “É um fato que o senhor Antero mantém o filho preso, e que para isso usa correntes e até algemas”.

“E a senhora acha isso normal?” – surpreso, o homem quer saber. A mulher faz cara de desdém. “Não vejo nada demais nisso, é só uma maneira de disciplinar o menino”. Com o nariz empinado, conclui: “Além do que, o pai está no seu direito. Como pai, ele é livre para fazer o que quer”.

Aos poucos, começo a entender que, apesar de ser um homem intratável e boçal, senhor Antero é admirado. Reelegeu-se síndico pelo terceiro ano consecutivo.

É visto como um homem de pulso firme, que mantém o condomínio nos eixos. Sua brutalidade é vista como força. Suas maldades, como exibição
de potência.

Contam-me que o cachorro ensanguentado se chama Osório. Foi espancado pelo dono porque defecou em um tapete turco. Nem assim aprendeu a boa lição.

Semanas depois, repetiu seu pequeno crime. O senhor Antero não teve dúvidas: levou-o para o carro, dirigiu até uma BR e o soltou na estrada.

Tempos depois, peço à Margarete, que trabalha como diarista para meu amigo, que lustre a porta do apartamento. No corredor, um vizinho, que eu desconheço, solta: “Essa faxineira é uma vagabunda. E o senhor ainda pede ‘por gentileza’? Ela merece uma boa sova”.

Descubro que esse vizinho, Eurípides, é amigo do síndico. Aos sábados, assistem à luta livre. Aos poucos, outros hábitos do senhor Antero se revelam. Manias estranhas. Certas noites, mesmo sendo proibido, gosta de pegar carona na viatura de um irmão, policial civil, só pelo prazer de fazer a ronda na cidade e testemunhar a agonia dos detidos.

Ele e o irmão têm o hábito de apostar a respeito do número de prisões noturnas. O vencedor ganha uma carga de munição. O senhor Antero pratica tiro em um clube desportivo, me dizem. Em vez de se assustar com seu temperamento sádico, a vizinhança, em geral, o admira. É visto como um homem destemido e reto. Os que divergem se calam.

Evito a companhia do senhor síndico. Quando falam dele – quase sempre com elogios e ênfases –, tento não ouvir. Em mais algumas semanas, a obra de meu apartamento terminará e eu voltarei para casa. Nada daquilo me diz respeito – tento me convencer. Mas não me convenço.

Certa noite, ao chegar do trabalho, encontro um tumulto na portaria. Em uma maca, enfermeiros carregam o filho do senhor Antero. Atrás dele, uma mulher chora. O rapaz está muito pálido, quase morto, mas não está morto. “Dessa vez, a surra foi violenta”, alguém comenta. Com pose triunfante, o senhor Antero, ele mesmo, fecha o séquito. “Vamos com isso, afastem-se”, grita. “Esse é um assunto de família.”

Na face arregalada de alguns vizinhos, entrevejo um sorriso contido, entre a vergonha e o gozo. Do fundo da portaria, ecoam sussurros que se misturam a aplausos discretos – mas deve ter sido delírio meu. “Não é possível que festejem o ódio”, penso. Alguém comenta que, “por sorte”, na juventude, o senhor Antero lutara boxe, e que agora, na vida adulta e de plena posse de seus direitos de pai, goza dos frutos de sua formação.

Subo às pressas. Minhas pernas vacilam. Sem pensar, começo a juntar minhas roupas e a fazer a mala. Meu apartamento ainda não está liberado, as obras levarão mais uma ou duas semanas, mas isso não pode ser um impedimento. Passarei algumas noites em um hotel. Não ficarei mais um só minuto sob a administração da besta.

É o que faço. Ao entrar no quarto do hotel, corro para a janela. Preciso respirar. Tenho, então, uma crise de choro. Não imaginava que fosse chorar, mas alguma coisa estava presa dentro de mim e, na solidão do quarto, explode. O que me choca não é só a brutalidade, mas o gozo com a brutalidade. No condomínio de meu amigo, a boçalidade se torna um valor. Um atributo dos homens corajosos e varonis.

Meu apartamento fica pronto e volto, enfim, para casa. Dias depois, meu amigo chega da Alemanha e me convida para jantar. Sinto um calafrio quando cruzo a portaria do condomínio. Enquanto mastigamos uma pizza, ele me conta: “O prédio está muito abalado. Um adolescente assassinou o pai com um facão de cozinha”.

O garoto já estava preso, em um manicômio especial. Quando desço para esperar um táxi, o que mais me choca é o comentário de uma senhora piedosa que acende algumas velas na portaria: “Pobre senhor Antero, um homem de bem, mas criou um monstro”.