Castello Rafael Olinto

Não sei como meu pai conheceu o senhor Agostinho. Minha mãe acreditava que eles se esbarraram na feira semanal, onde o velho esmolava ao lado da barraca de batatas. Fazia sentido porque o senhor Agostinho só nos visitava às quartas-feiras, no início da tarde, hora em que os caminhões de lixo começavam a limpeza da xepa. E meu pai era louco por batatas.

Toda quarta-feira, logo cedo, uma cadeira era colocada no hall de nosso apartamento, para que ele se acomodasse ali mesmo, e não ousasse ultrapassar o tapete da sala. Era uma cadeira antiga, de madeira rota e encosto alto. “Um trono para um mendigo”, minha mãe dizia, sem perceber que, com esse comentário, expunha não só seu preconceito, mas seu nojo.

O senhor Agostinho, dizia-se, sofria de erisipela, infecção na pele que meus pais confundiam com a lepra. Vestia um terno muito surrado. Tentava esconder a vergonha, mas feridas purulentas se derramavam, como insetos, pelo rosto e pelas mãos. Aos 8 anos de idade, seu Agostinho me parecia velho, muito velho, mas talvez eu confundisse a penúria com a velhice.

Éramos, eu e meus irmãos, proibidos de entrar na sala durante as horas de visita. Ainda assim, enrolado na cortina do corredor, eu o observava. Talvez ele fosse um ogro, como nos contos de Grimm, talvez fosse um espectro, como nos filmes de terror. Seu olhar era doce, lágrimas escorriam pelas bochechas. Talvez fossem remelas. Seja como for, o senhor Agostinho era um estranho e isso me dava medo. Não entendia esse medo, mas o sentia. As advertências de meus pais a respeito da distância que dele devíamos manter acentuavam esse sentimento.

Quanto mais o medo me dominava, mas eu me sentia atraído pela figura imponente, larga, mas também ameaçadora, de nosso visitante. A barriga estufada como um balão, o paletó aos farrapos, os cabelos em desalinho, pontudos e melados, imitando uma coroa. O mistério o cercava. Até porque meu pai nunca me explicou os motivos de sua visita.

Minha mãe lhe oferecia um caldo quente, mas não era pelo caldo porque, mesmo depois da tigela vazia, ele continuava a esperar. Também meu pai não lhe dava atenção e, que eu tenha visto, nem dinheiro. Ele ficava ali, no hall, como um chapeleiro, ou um cabide. Perversa, a família o transformava em um objeto. Só sei que respirava, muito forte, aos trancos. Talvez fosse asma.

Já naquela época, antes dos 10 anos de idade, eu era fascinado por livros. E os livros me atraíam, sobretudo pela capa. Juntava minha pequena mesada para gastar em uma papelaria na Avenida Copacabana. Era uma livraria improvisada, mas resistente. A um canto, havia uma prateleira estreita de livros estrangeiros. Foi ali que encontrei uma edição de bolso, da Livre de Poche, de A metamorfose, de Franz Kafka. Guardo-a como um talismã. Agora mesmo ela está aqui a meu lado.

Ainda não estudava francês e nunca ouvira falar de Kafka. Escolhi o livro pela capa vermelha, vibrante, quase toda ocupada pelo desenho negro de uma barata. O título e o nome de Kafka vêm em amarelo. A capa pega fogo. Logo na folha de rosto, como faço até hoje, anotei meu nome – completo, em letras redondas de menino – e o ano: 1955. Nasci em 1951. Não faz sentido que eu tenha comprado a edição francesa de A metamorfose aos 4 anos de idade, mas é isso o que a anotação me diz.

Só li A metamorfose, nessa mesma edição francesa e com grande dificuldade, aos 13 anos de idade. Adiei a leitura, não só por causa de minhas deficiências com o francês, mas por superstição. O bloqueio surgiu na única tarde em que, por um descuido de meus pais, consegui me aproximar do senhor Agostinho. Cumprimentei-o. Foi a primeira vez em que ouvi sua voz: “Boa tarde, garoto. Você parece uma barata”, ele me disse. A voz era rouca, de um homem doente, e por isso a comparação soou ainda mais aterrorizante.

Fui um menino magro, esquivo, meio curvo, que só se vestia de marrom, ou de preto. As outras cores me pareciam escandalosas. Eu tinha braços longos e finos – como as perninhas das baratas. Achava-me horroroso e tinha medo de que, a qualquer momento, alguém pisasse em mim. Como o senhor Agostinho acertou? Perguntou-me, então, se eu conhecia a história de um rapaz que, um dia, acordou transformado em um inseto. Não entendi – não tinha lido o relato de Kafka. Temi que fosse uma ameaça ou, pior, uma premonição. Talvez ele fosse um adivinho.

Conservando a distância, e para me proteger, sentei-me no chão. À minha frente, em seu trono roto, o senhor Agostinho tomou as feições de um deus. Cresceu – sua cabeça quase batia no teto. Eu tremia enquanto ele falava. “Você é muito jovem para conhecer Kafka”, ele me disse. E aí, exibindo a falta de dentes e uma língua branca, completou: “Ele foi um gênio”.

Como ele podia saber que este era exatamente o nome do autor que eu me preparava para ler? Como adivinhou? Achei que fosse um vidente. Pensei em coisas terríveis, que hoje me envergonham. Ainda me perguntou se eu tinha o hábito de ler. Mas, nesse momento, meu pai entrou na sala e disse: “Aqui não é lugar para crianças”. Os dois ficaram um tempo conversando, nunca soube sobre o que. Logo ele se despediu. Nunca mais nos visitou.

Deixou em meu espírito um rombo, cheio de perguntas. Devia ser um homem culto, mas então por que esmolava? E o que revelou de tão terrível, confissão ameaçadora que levou ao rompimento da amizade com meu pai? Digo “amizade” porque não sei que palavra usar. Aquela foi a primeira vez em que presenciei, ainda que de longe, um diálogo entre eles.

Muitos anos depois, pedi a minha velha mãe que me falasse do senhor Agostinho. “Nunca entendi por que seu pai o recebia”, ela admitiu. “É um segredo que ele levou para o túmulo”. Ainda hoje, em minha memória, as figuras de Franz Kafka e do senhor Agostinho se misturam. Foi ele a primeira pessoa a me apresentar ao escritor checo. Para mim, é impossível ler Kafka sem me lembrar do velho. Talvez também Kafka, com sua escrita ofegante, fosse um mendigo, que escrevia para sobreviver. Se foi assim, os dois perseguiam o mesmo objeto: farelos de afeição.