Ano de 2003. Preparo-me para ir a São Paulo para fazer uma entrevista com Lygia Fagundes Telles, encomendada pelo jornal Valor Econômico. Aos 80 anos de idade, Lygia permanece vigorosa e bela. Temos o hábito de conversar por telefone. A mistura de força e delicadeza, que a define, sempre me assombra.
Durante a viagem para São Paulo, recordo que nossas conversas começaram em 1994, quando lancei minha biografia de Vinicius de Moraes. Na noite de autógrafos, chovia muito. Em meio às águas que escorriam em jatos pela Rua Augusta, Lygia me surpreendeu. Protegida por uma capa longa e carregando um guarda-chuva vermelho, ela surgiu, de repente, diante de mim. Quando a avistei, achei que era só uma ilusão. Pois era Lygia, ela mesma, a combatente.
Sempre me dizia que a literatura é uma espécie de luta — uma luta não só com as palavras, mas com os sonhos. Na livraria, ao se aproximar de mim, sussurrou um segredo: “Apesar da chuva, um impulso me trouxe. A literatura nos leva a fazer coisas que não planejamos”. Não era só uma cortesia que a escritora consagrada dedicava a um iniciante. Era ternura. E mais: fé intensa na escrita.
Hilda Hilst já me falara, muitas vezes, a respeito da candura extrema de Lygia Fagundes Telles. Lembro que um dia descreveu: “O mundo pode estar desabando, mas Lygia não perde a mansidão”. Eu tinha uma pessoa firme e determinada diante de mim. Não seria uma tempestade que a deteria. Ainda em voz baixa, ela me disse: “Se a gente não se enfurece um pouco, as coisas não acontecem”.
Quase dez anos depois, dias antes de minha ida a São Paulo para entrevistá-la, ela me manda uma carta. Nela, Lygia me adverte que, em nossa futura conversa, não poderemos deixar de falar de As meninas, romance que publicou em 1973. Sem poupar as palavras, faz uma defesa apaixonada do livro. “Eu sou aquelas meninas”, resume.
Todos conhecem Ciranda de pedra, seu primeiro romance, de 1954, adaptado depois pela Globo. Foi uma novela de muita qualidade e excelente audiência. Com delicadeza, mas precisão, Lygia me alerta, porém, que não devo me deixar cegar pelo sucesso. “O escritor que vai ficando velho fica com muito medo que o livro envelheça com ele”, ela me diz. “Confesso que não padeço desse medo, o que me parece importante é não fazer papel miserável para ficar na moda.”
A esse respeito, ela ainda insiste: “A servidão da moda é que me parece a coisa mais cruel que existe. Afinal, não precisamos ser jovens e bonitos (seria ótimo, mas fazer o que?) e sim escrever bem”. Por isso, justamente porque despreza o sucesso fácil e os modismos, Lygia me escreve para fazer uma defesa enfática de As meninas. Um romance, ela me ensina, que ultrapassa o tempo.
Em sua carta, Lygia rememora a difícil carpintaria do livro, um relato dramaticamente agarrado ao real. No ano de 1971, em plena ditadura militar, ela recebe em sua casa, na Rua Sabará, no bairro de Higienópolis, um panfleto político. Nele, uma voz anônima denuncia a tortura a que foi submetido um jovem preso político que, por fim, entrou para a longa lista dos desaparecidos.
Tratou de mostrar o panfleto ao marido, o historiador e crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes. Rememora as palavras que dele ouviu: “Aproveite esse panfleto aí no seu romance, é arriscado, mas acho que vale o risco”. Na mesma hora, Lygia decidiu transportar a experiência do jovem torturado para uma de suas três meninas. Lia, “minha personagem subversiva”, foi a escolhida.
“Dei as minhas voltas e encaixei a realidade em meio da invenção, oh! Deus, uma realidade tão real no diálogo da menina com a Madre Alix lá do pensionato”. Com habilidade e elegância, Lygia Fagundes Telles transportou o horror da repressão política para o interior da literatura. Só uma grande escritora poderia aproximar o terror da beleza.
Para os leitores interessados, o episódio da tortura de Lia — que reencarna os horrores que o jovem desconhecido padeceu — está no capítulo seis do romance, que começa na página 123 e termina na página 148 da primeira edição. Sem perder o humor diante da abominação, Lygia ainda me diz: “A descrição da tortura [o foco na violência] vai da página 146 até a 147, mas não seja preguiçoso e leia o livro inteiro”. Sábia recomendação que transfiro, agora, a meus leitores.
Pronto o capítulo da tortura, Lygia o mostrou a Paulo Emílio. Depois de ler, o marido comentou: “Está ótimo, perigoso, mas ótimo. Caso você venha a ser interrogada, dirá simplesmente que não pode responder pelas falas de suas personagens — que são livres, completamente livres. Quem vai poder controlar essas jovens?”
Rememora Lygia, ainda, que, quando o livro foi publicado, e logo entrou para a lista dos mais vendidos, ela sentiu Paulo Emílio muito preocupado. “Mas um dia chegou em casa rindo, ficou sabendo que o tal censor literário não conseguiu passar da página 40, porque achou tudo muito chato.”
A primeira edição teve uma orelha do próprio Paulo Emílio Salles Gomes. Recebeu excelentes críticas de Otto Maria Carpeaux e de Ricardo Ramos, filho de Graciliano Ramos. Agora que Lygia nos deixou, volto a As meninas em busca de suas pegadas. O livro se torna uma porta de entrada para uma obra delicada, mas feroz.
A literatura inclui graves riscos. Se você escreve para valer, como Lygia fez, não ficará impune. A literatura ousa dizer o que, em geral, não ousamos dizer. Em consequência, ela produz graves ferimentos. Logo após a morte de Lygia, em 3 de abril, aos 98 anos, circulou pela internet uma de suas frases mais vigorosas: “Não cortaremos os pulsos, ao contrário, costuraremos com linha dupla todas as feridas abertas”. Não devemos temer as cicatrizes, ela me dizia. São as cicatrizes que nos desenham.
A frase, tirada de A disciplina do amor, livro de 1980, é precedida por outra frase de igual potência: “É preciso ter um peito de ferro para enfrentar essa luta na qual entra não só o fervor, mas uma certa dose de cólera, fervor e cólera”. Descrever a cena da tortura sofrida por Lia, em As meninas, é afiar a cólera e transformá-la em ímpeto. É, ainda, transformar a literatura em uma máquina de salvação.