Arrumo minha biblioteca. No alto de uma estante, encontro uma caixa com duas dezenas de velhas fitas cassetes. Estão cobertas de poeira. Ao que parece, perdidas. Guardam entrevistas antigas, que gravei nos primeiros anos de minha carreira de repórter.
Anotei os nomes dos entrevistados. Muitos deles, desconhecidos. Uma das fitas traz a voz de um delegado de polícia da Baixada Fluminense. Outra, de um líder sindical. Em uma fita com capa azul, está escrito: Raul Bopp.
Já que não tenho como ouvir a gravação, recorro ao registro, mais precário, da memória. Ao lado do nome de Bopp, anotei o ano: 1975. A entrevista aconteceu, portanto, nove anos antes da morte do poeta. E não mais que dois anos depois de sua volta, em definitivo, para o Brasil. Bopp, que era diplomata, viveu no exterior entre 1942 e 1973. Já caminhava para os 80 anos.
Deixo a fita de lado – agora não mais que um talismã inútil. Desisto, também, da faxina em meus livros. Sento-me em uma poltrona, fecho os olhos e vasculho a memória, em busca de vestígios de nosso encontro. Que, para dizer a verdade, não chegou a ser um encontro, foi mais um desencontro.
Lembro-me de que o entrevistei em Copacabana. Talvez na Rua Tonelero, mas não estou certo. Esforço-me para recordar nosso diálogo. Um leitor já me disse que se espanta com minha capacidade de relembrar detalhes e até frases inteiras. Meio século depois, as lembranças me voltam distorcidas. A imaginação as transforma. Não são os fatos puros. São as marcas e cicatrizes que os fatos deixaram em mim.
Dito isso, assinalados os graves riscos que corro, ponho-me a recordar. Naquele ano, eu era repórter do Diário de Notícias, um jornal carioca que fechou suas portas pouco depois. Já era um jornal decadente. O improviso e a incerteza nos guiavam. Em busca de assuntos para as páginas culturais, o chefe de reportagem me pediu uma entrevista com Bopp.
Não havia uma pauta, eu devia improvisar. Não havia um tema também. “O homem voltou para o Brasil há pouco. Trate disso”, limitou-se a me dizer. Eu tinha 28 anos. Embora trabalhasse como repórter desde 1971, tive uma formação desordenada, dispersa, típica dos “repórteres de geral”. O geral – a superfície – era minha especialidade.
A internet só surgiria comercialmente no Brasil duas décadas depois. O arquivo do jornal, pequeno e caótico, não me ajudou. “A pauta é para ontem”, me disse o chefe, impaciente. Passou-me um número de telefone. Marquei a entrevista para aquela tarde. Fui, sem saber por onde começar.
Estudei com os jesuítas. Tive aulas de literatura com grandes mestres, mas o modernismo era avançado demais para os padrões do colégio. Chegávamos a Bandeira, alguma coisa de Mário. De Oswald, eu só conhecia o nome. De Bopp, ninguém me falou. Os manifestos modernistas talvez fossem endemoniados. Eu levava comigo um grande vazio.
Cheguei à Rua Tonelero com meu velho gravador, em forma de tijolo, e minha ignorância. Sentia medo. Mais que medo, sentia vergonha. Sentimentos nobres, mas inúteis. Até o fim daquela tarde, eu devia escrever um texto sobre o poeta Raul Bopp. Mas qual?
O próprio Bopp me recebeu. Eu não esperava que ele estivesse tão idoso. Tinha um sorriso gentil. Levou-me a uma sala. Escolheu um sofá. Eu quieto, esperando não sabia o quê. Bopp a me encarar. Até que o poeta perguntou: “O que você quer saber mesmo?” Comecei a frase que não sabia terminar: “Eu gostaria que o senhor falasse...” E atolei. Afundei em minha ignorância.
Eu suava. Lembro-me disso porque, tentando me ajudar, o poeta me ofereceu um refresco. Uma trégua. Acalmei-me. Então, em um impulso – e muitas vezes impulsos vexatórios me salvam –, eu disse: “A verdade é que não sei o que devo lhe perguntar”. A frase, deprimente, o fez rir. Era ridículo, inaceitável, mas Raul Bopp soube entender. Aos 24 anos de idade, eu não era mais um garoto. Estava ali como um profissional, representando um jornal que ainda conservava certo prestígio.
“Vocês, repórteres, são obrigados a saber de tudo”, ele me ajudou. “Como conseguem?” Gelei. Ele mesmo respondeu à pergunta que fizera: “Ninguém consegue”. Meu ritmo de trabalho era frenético. Às vezes, devia dar conta de duas, ou até três pautas por dia. Os assuntos variavam dos esportes à medicina, passando pelo trânsito e pela literatura. “Não, eu não consigo”, admiti, agora com um pouco mais de coragem.
Levou-me a uma pequena biblioteca e me mostrou livros dos colegas modernistas. Fiquei feliz quando enxerguei o romance Amar, verbo intransitivo, que Mário publicou em 1927. Não o lera, mas, semanas antes, assistira a Lição de amor, a adaptação para o cinema com Lílian Lemmertz. O filme me impressionou. Disse-lhe isso. Bopp o desconhecia, e esse desconhecimento me trouxe grande alívio. Ele nos igualou.
Era possível não saber, não conhecer, e ainda assim ser Raul Bopp, pensei. Aquilo me encheu de felicidade e esperança. “Talvez seja bom eu falar sobre o que ando escrevendo”, ele me ajudou. Falou, então, sobre alguns poemas, que andava a rascunhar. Anos depois descobri que eles, provavelmente, compunham Mironga e outros poemas, seu último livro, publicado em 1978.
Anotei ferozmente. Temia que o gravador falhasse, que tudo se perdesse e que minha memória me traísse. Ele me observava. Um olhar bondoso. “Se eu estiver falando rápido demais, você me corrija”, disse. Falava com lentidão. O tom era bondoso. Um avô que conta histórias para o neto.
Antes do meu encontro com Raul Bopp, tinha uma impressão nervosa e algo selvagem dos modernistas. Até hoje, muitos têm. Encontrar aquele homem idoso e clemente, que acolheu minha ignorância e ainda me ajudou a vencê-la, me faz pensar nas fantasias com que suavizamos a vida. No quanto enfiamos nas pessoas máscaras que não lhe cabem. No quanto nos iludimos.
Quando Bopp se cansou de falar sobre poesia – sempre devagar, quase ditando, como um professor abnegado –, e invertendo nossas posições, passou a perguntar sobre mim. Queria me conhecer. Cheio de vergonha, respondi duas ou três tolices. Não precisava: estava tudo dito.