Não ousei recusar seu convite. Embora estivesse cansado e, na verdade, eu o conhecesse pouco, muito pouco, convidou-me para uma cerveja com tal delicadeza – uma insistência disfarçada em ternura – que não me deixou alternativas. Tive que aceitar.
Levou-me ao Café das Sentinelas, em uma travessa da Barata Ribeiro, no Rio de Janeiro. Ele também desconhecia a casa, mas precisava de um esconderijo para a confissão que me faria. “Desde a primeira vez em que o vi, achei que você me compreenderia. Ou, pelo menos, que seria capaz de me escutar”, me disse, antes mesmo de nos sentarmos. Encarava-me com olhos de fera. Coçava o cavanhaque murcho.
A cerveja chegou. Vieram salgadinhos que fediam a enxofre. A casa estava vazia, não precisávamos nos preocupar. “Como é o seu nome mesmo?” — perguntei. Sim, eu já o conhecia de vista. Algumas vezes, o vi chegar à redação com sua bengala, e se dirigir direto à mesa do chefe. Os dois passavam longo tempo aos cochichos. Ele não falava com mais ninguém, depois ia embora.
“Chamo-me Antônio”, respondeu. “Na verdade, meu nome de batismo é Anton. Sou Anton Tchékhov”. O que relato aqui aconteceu nos anos 1980. Portanto, cerca de 80 anos depois da morte do escritor russo Anton Tchékhov, na Floresta Negra. Gelei. Meu pai me alertava a respeito de meu interesse pelas almas exóticas — como ele dizia. Meu pai estava certo — e eu estava agora diante de mais uma.
“Mas...”, comecei a dizer, quando nada havia a dizer, e por isso não continuei. Suspirei. Suspirei mais uma vez. Ainda fiz um esforço: “O senhor é um homônimo do escritor célebre”? Arreganhando os dentes, ele me corrigiu: “Não sou um homônimo, sou o próprio escritor”. Eu não precisava perguntar mais nada. Meu pai estava certo.
Percebeu que empalideci. Ofereceu-se: “Como o senhor deve saber, além de escritor, sou médico”. Não, eu não precisava de seus cuidados, precisava sair dali. Escapar. Ao mesmo tempo, algo nele me atraía. Esse algo tem um nome: a loucura. Voltei a pensar em meu pai. “Você deve se afastar dos insensatos. Eles contaminam”. Eu queria, mas não queria. E fiquei.
“O que o senhor deseja de mim, doutor”? Era gordo – mas Tchékhov era um homem esguio. Tinha um pequeno nariz em forma de batata – o nariz de Tchékhov era reto. Era velho, talvez tivesse uns 70 anos – e Tchékhov faleceu aos 44. Estava tudo errado. Nada combinava. Por que ele insistia? Por que eu insistia?
Tentei entrar em seu jogo: “Pretende me transformar em um de seus personagens”? Ele riu. Riu muito, e enquanto ria, babava. Não sei se era baba, ou se era a espuma da cerveja. De qualquer forma, era nojento. Enfim, enigmá tico, me disse: “Não convém se aproximar se a pessoa não estiver fria como gelo”.
Lembrei-me que Tchékhov, o verdadeiro, dissera alguma coisa parecida. Falou, também, do valor da indiferença. Acho que disse: “Nesse mundo é indispensável ficar indiferente”. Um médico não pode se envolver com seus pacientes, ou não conseguirá tratá-los. Muito menos, operá-los. Entendi então que meu entusiasmo pelo velho era uma doença.
Tentei dizer que ele não precisava de mim. E mais: que aquele convite para uma cerveja não era prova de que quisesse algo comigo. Nada teria para lhe dar. “Por que me convidou então”? — insisti. Passei a me sentir como um vomitório. Eu estava ali só para estimular e acolher sua descarga de palavras. Eu era o recipiente em que ele vomitava. Que fastio.
Veio, mais forte ainda, a vontade de fugir. Por que eu não fugia? Bastava me levantar, largar uns trocados sobre a mesa, pegar meu casaco e correr. Correr muito. Não importa para onde, mas fugir. Mas não: eu fiquei. E foi aí que o pior começou.
O falso Tchékhov me convidou para escrever o prefácio de seu novo livro. De contos, perguntei? “Não, não são contos. É o relato de minha viagem à Ilha de Sacalina”. No ano de 1890, o verdadeiro Anton Tchékhov esteve em Sacalina, na Rússia, para documentar a vida de prisioneiros submetidos a trabalhos forçados. Teria o falso Tchékhov refeito a mesma viagem?
O que levaria o falso Tchékhov, nos anos 1980, a se deslocar até o extremo oriente? Teria, de fato, ido? “O senhor não vai me dizer que foi mesmo”. Insistiu que sim, que esteve na ilha para uma pesquisa científica. Sabia que eu não acreditava, mas isso não o incomodava. “Tudo que eu quero é seu prefácio. Me garantiram que não me decepcionarei”.
Para me livrar, disse que sim, que aceitava seu honroso convite, e nem perguntei pelo pagamento. Tirou da pasta um caderno preto. A capa rota, embaçada, as pontas tortas, um cheiro de mofo. Um nojo. “Estou lhe entregan do o manuscrito, e não uma cópia, para que o senhor acredite que sou mesmo o autor”.
Combinamos um novo encontro para duas semanas depois, no mesmo café. Tratei de pagar a conta e desapareci. Só em casa, entre o riso e o pânico, abri o caderno. Eu não poderia esperar outra coisa: ele estava em branco. Totalmente em branco, ou melhor, em amarelo. Assim estavam as páginas, amareladas, encardidas e gastas pelo tempo.
Não preciso dizer que não fui ao encontro marcado. Na redação do jornal, me esquivava pelos cantos, entre as estantes, apavorado com a possibilidade do retorno do falso Tchékhov. Evitava me aproximar da mesa do chefe. Ele não reapareceu.
Um dia, tomei coragem e perguntei ao chefe de reportagem por aquele seu amigo silencioso, que volta e meia o visitava. “Aquele que acha que é Tchékhov”? ele me perguntou sereno. Vendo meu pavor, o chefe tratou de dizer: “Na verdade, ele foi preso. Era um falsário. Roubava originais antigos e assinava em seu nome”.
Que fosse. Mas por que me entregou, em vez disso, um caderno em branco? Intrigado, marquei um encontro com o chefe para alguns dias depois no mesmo Sentinelas. Relatei, então, minha conversa com o falso Tchékhov. Ouviu-me em silêncio. Parecia assustado. “Melhor não falarmos mais nisso”, resumiu.
Deixei-o tomando seu uísque e me despedi. Estava no ponto de ônibus do outro lado da rua quando vi o falso Tchékhov entrar no café. Dirigiu-se à mesa do chefe. Os dois se abraçaram. Peguei o primeiro ônibus que passou, mesmo não sendo o meu.