Esbarro com João Antônio (1927-1996), o escritor insubmisso, coração em brasas, meu amigo. Caminhamos, em direções opostas, pela orla de Copacabana. Vem resmungando – contra os pedantes, os endinheirados, os ociosos. Parece exausto. Quem sabe, prestes a gritar.
Não grita, me vê e abre os braços, feliz. Sugere uma cerveja. Não parece mesmo bem. Antes que eu lhe pergunte o motivo, me diz: “Estou com ódio de mim”. É avesso a preâmbulos e a adornos. Vai direto ao ponto. “Estou apaixonado por uma faxineira. Sei que minha paixão a importuna, mas eu insisto”.
Conheceu a moça na Serralheira do Dantas, na Ladeira dos Tabajaras, onde ela cuida da faxina. Chegou à loja em busca de uma broca. Viu Nímia, a faxineira, agachada entre as tábuas, empurrando um balde. Tentava afastar a serragem que cobria o corredor. Suava muito. Os dois suavam muito e logo se identificaram.
Estou exausto, trabalhei a noite toda, mas não posso deixar de ouvi-lo. Desde o início, João Antônio me amparou. Nunca me repreendeu por ser frágil, indeciso, lento, atrapalhado. Soube ver nesses defeitos – que enfureciam meu chefe de reportagem – preciosas qualidades. “Seja exatamente o que você é”, me dizia. “E nada mais”.
Ensinou-me que a melhor forma de lidar com os defeitos não é apagá-los, ou negá-los, mas cultivá-los. “Eu sei, você é lento, quando os repórteres devem ser ágeis. Pois seja mais lento ainda. É sua única saída.”
Como me negar a ouvir esse homem? “Você me entende? Mesmo sabendo que devo respeitá-la, eu não a respeito”, João continuou. A moça era simples e quieta. Era feia. Tinha um buço dourado. Mesmo não querendo nada com ela, meu amigo não a esquecia. Continuava a cortejá-la. De longe, com discrição e elegância, mas seduzia.
“Uso meu poder de classe”, ele me disse. “Quando eu a olho, eu a piso”. Voltava com frequência à serralheria, encostava-se em algum carro estacionado à porta e a observava. Nímia evitava seu olhar brutal de macho poderoso. Agarrava-se à vassoura e varria, varria, mas a serragem, trazida pelo bafo do ventilador, voltava sempre. João Antônio ria. Não passaria disso, não ousaria mais que isso. Ainda assim, era uma provocação. Era odioso.
“Eu me odeio”, ele insiste. “Tento ser um homem decente, mas sou um crápula”. A coisa tomou proporções diabólicas. Ao sair de casa para trabalhar, antes de pegar o ônibus que o levaria à Lapa, uma força obscura o empurrava para a ladeira. E lá estava Nímia, agachada entre detergentes, lutando contra a sujeira. Ele a vigiava de longe. Muito sério. Um carrasco.
Houve o dia em que não se conteve. Já sabia que na loja não se vendiam parafusos, mesmo assim entrou para encomendá-los. “Parece que já lhe disse que não temos”, disse o português. Havia um resto de deboche em suas palavras. Com um dos olhos, João levantava as saias de Nímia que, ainda de joelhos, torcia um pano de chão.
Pediu então para ver alguns suportes em forma de “L”. Pensou: “L” de ladrão. Era o que fazia: roubava a alma da moça. Rondou as prateleiras, examinou umas roldanas, uns cavaletes. Em sua performance de ator medíocre, passou por Nímia. Olhou-a do alto, embora fosse baixo. Sabia que era um ogro escondido em um anão. Sentia-se um fanático, um devasso, mas não podia parar. A tal força o impelia.
Chegou a achar que a moça fosse mergulhar o rosto no balde para se afogar. Achou que ela fosse chorar. Achou tantas coisas, mas não se continha, continuava. O impulso. A possessão. Que homem era aquele, que ogro era aquele, de olhos imensos, que tomava seu lugar? Por fim, Nímia se ergueu e sumiu detrás do balcão. João saiu e se encostou de novo em um carro. Ali ficou, a esperar.
A moça não voltou. Talvez algum serviço interno a tenha prendido. Talvez tenha fugido. Nas manhãs seguintes, João Antônio ainda esteve na serralheria, mas não a viu mais. Desapareceu. Até que um dia, ao encontrar outra mulher debruçada sobre o balde, desesperou-se. “Ela fugiu de mim, você entende? Sou um terrorista.”
Passou a se odiar. Por que os machos não podem se conter? Por que se entregam aos instintos? “Sou uma besta. Um canalha”, me diz. Tento acalmá-lo. Talvez a moça tenha se afastado do trabalho por outro motivo. Pode estar doente, ou de férias. “Faxineiras não tiram férias”, ele me corta. “Os patrões as usam e depois descartam. Como baldes velhos.”
Peço que me leve até a serralheria. A desculpa é saber o preço de um pré-moldado. À entrada da loja, há uma caixa de serrotes. “Eu devia é cortar meu pescoço”, meu amigo resmunga. Combino que entraremos juntos, mas que ele ficará quieto. Dirijo-me ao português e pergunto por Nímia. “É uma louca. Pediu as contas sem motivo”, me diz o Dantas. Viro-me, mas João já não está ali. Vejo-o na calçada. Talvez precise de ar.
“Sou um agitador de sentimentos.” Argumento que exagera. Lembro que o drama não combina com seus escritos. “Eu não queria ser quem sou”, ele insiste. “É nojento o que sinto e é nojento o que faço.” Tento convencê-lo de que nada fez, a não ser olhar. “Usei minha posição de freguês endinheirado para humilhá-la.” Vivia cheio de dívidas.
Anos depois, as memórias desse episódio antigo me chegam deformadas. Envergadas pelas fantasias, que tomam o lugar do que não se pode recordar. Seja como for, João estava certo de que cometeu uma violação. Ainda tentei tranquilizá-lo, argumentando que imitava os poetas, que se encantam por suas musas. “Não sou poeta”, me diz. “E ela não era uma musa.” Respira e sussurra: “Era feia, e musas não são feias.”
Nunca mais falamos do episódio. Mas, a partir dele, passei a compreender melhor a mágoa discreta, o buraco, a ferida purulenta que, mesmo quando estava feliz, João Antônio levava no peito. Percebia em si mesmo os limites instáveis do humano. A maneira como nos negamos. Pensamos uma coisa, mas fazemos outra. Não, não somos seres confiáveis.
Ainda hoje guardo a imagem perplexa de meu amigo, as bermudas antiquadas, a camisa surrada, as sandálias rotas. Apesar delas, ele dizia: “Não passo de um janota. Um almofadinha. Luto para não ser, mas sou”.