Capa 2 Luisa Vasconcelos setembro.20

 

Estou em Copacabana. Ainda não amanheceu. Passo o café e, mesmo no escuro, desço para comprar pão. Ninguém na rua. Desde menino, aprecio o silêncio do alvorecer. Caminho sem pressa, quase feliz, rumo à padaria da esquina.

Não dou meia dúzia de passos e um rapaz alto e largo, de bermudas e camiseta, se aproxima. Contra as últimas luzes da noite, sua pele negra brilha. É quase azul. Do vulto nobre, emana uma voz: “Eu podia estar assaltando, podia estar matando, mas estou pedindo”. A ladainha automática, desesperada, me paralisa.
Logo incorporo o cidadão de classe média, sonso, covarde, arrogante que, apesar de meus esforços, eu também sou. “Só tenho moedas para pagar o pão”, digo. Minto com desfaçatez: no bolso, levo minha carteira e nela, além de alguns trocados, um cartão de crédito.

Minto e aperto o passo. Com rispidez, eu o despacho: “Além de tudo, estou com pressa”. Mais dois ou três passos, e o rapaz se perfila a meu lado: “Pois eu estou com pressa também”, ele berra. Andamos alguns metros lado a lado. Um abismo nos separa. Sinto seu ombro que quase bate em minha cabeça.

Vindo não sei de onde, sem que eu planeje isso, um instinto — mistura de medo e boçalidade — me leva a parar. Com a frieza de um cadáver, eu o encaro. Sem planejar nada, uma frase me sai: “Mas, afinal, o que está acontecendo?” O rapaz não vacila: “Tenho três filhos. Estou voltando para casa e não levo nada que eles possam comer”.

Ele diz e espera. Espera de mim que eu não seja só o patife que sou. Como não consigo dizer nada, continua: “Se eu tivesse pelo menos uma lata de leite em pó, já ficaria feliz”. A voz agora é mais branda. Arrasta um cansaço imenso. Não é brandura, é desencanto.

Só então observo os olhos tensos do rapaz. Todo seu corpo está tenso. É grande e forte. Entendo que não posso errar. Ele espera, com a paciência dos vencedores. O derrotado sou eu. De novo, sem planejar isso — como se uma segunda voz saísse de meu peito — eu digo: “Se você me acompanhar até a padaria, eu lhe compro uma lata de leite”.

Será que a padaria da esquina vende leite em pó? Será que, com minha súbita bondade, eu não lhe entrego meu pescoço? Não sou um homem de bem, sou um frouxo que age por pavor. Penso coisas assim e me odeio. Sou um cidadão indigno, indecente, que, mesmo quando faz algum bem, é só para se defender do mal.

Andamos em silêncio. Na porta da padaria, a mesma voz que desconheço, e que carrego em meu peito, ordena, agora com certa rispidez: “Espere aqui”. Ainda passa por minha cabeça que talvez a loja tenha uma segunda saída, pelos fundos, e eu possa fugir. Ainda o medo de ver. Ainda meu coração de lata.

Caminho até o fundo da loja, peço dois pães franceses e volto devagar, bem devagar, inspecionando as prateleiras. Esbarro com a lata de leite em pó. Nem olho o preço: eu a pego e me dirijo ao caixa, que fica na saída. Saco meu cartão de crédito para pagar. Eu o borro com o suor nojento de minha mão.

Quando chego enfim à porta, o rapaz discute com o segurança da casa. “Isso é racismo”, ele grita. “Você está me expulsando só porque sou negro.” O guarda se exalta. É também um homem grande e se aproxima do rapaz com o peito inflado. Faz sua performance de defensor dos cidadãos de bem.

Mais uma vez sem planejar nada, eu me meto entro os dois. Faço tudo por instinto — alguém age em meu lugar. Quem? Entrego a lata de leite ao rapaz. Uma terceira voz, vinda talvez de meus intestinos — de zonas de meu ser que não ouso sequer me aproximar — diz: “Agora é melhor você ir embora. Antes que o prendam”.

O rapaz me encara. Contrai os músculos do rosto, a boca semiaberta, os olhos latejam. Irá me atacar? Bem diante do segurança, e mesmo com a lata de leite na mão, será capaz disso? Mas chega o momento em que, com uma única frase cortante, ele desarma não só o meu medo, mas a minha estupidez. “Obrigado, senhor, por falar comigo”, ele diz.

Não me agradece porque, com uma coragem que não tenho, me interpus entre ele e o guarda. Não me agradece pela lata de leite, só uma esmola miserável. Agradece-me por meia dúzia de palavras, mecânicas, emporcalhadas de horror, que eu lhe ofereci. Isso me desarma. É como se, com aquelas palavras, ele arrancasse uma espada de minha cinta.

Não consigo dizer nada. Também o segurança recua e mantém distância, ainda a vigiar. O rapaz me olha mais um pouco. Quase sorri — e o que se esboça em seu rosto não é um sorriso de deboche, mas de gratidão. Um sorriso que me desmascara. Que desnuda minha estupidez.

Ele caminha em direção à esquina. Já atravessa a rua quando se vira e ainda grita: “Boa sorte, senhor. E se cuide.” Só consigo responder: “Boa sorte para você também, meu filho”.

Só nesse momento, me livro enfim de minha ignorância e consigo vê-lo. Estou com setenta anos — ele não tem mais que 25. Filho, sim. Talvez neto. Um homem desesperado — como centenas, milhares, que se encolhem, enrolados em cobertas imundas, sob as marquises de Copacabana. Homens que passam fome. Homens desesperados. Sobreviventes da barbárie. Muitos definham. Alguns enlouquecem.

Ainda observo o rapaz que, agarrado à lata de leite, desaparece na esquina. Eu podia ter comprado duas latas, três latas. Podia ter lhe dado, ainda, como na Bíblia, algum pão. Mas não estamos na Bíblia. Estamos no Brasil.

Enquanto isso, nós, homens limpos da classe média — os “homens puros” de que falou, um dia, Vinicius de Moraes —, nos entregamos ao medo e ao cinismo. Nos agarramos a nossos cartões de crédito, atravessamos a rua para o outro lado, desviamos, fugimos. Estamos cegos e a cegueira nos protege.