Minha mãe via fantasmas. Em 1982, no velório de meu pai, nós dois sozinhos na madrugada, ela me disse: “Você notou? A capela agora está cheia”. A sala estava vazia. A família se dividia. Alguns falavam de seu poder mediúnico. Outros, de suas alucinações. Nunca me preocupei em tomar partido nessa discussão. Eu ficava com seus fantasmas. Eles eram belos.
Esses vultos antigos retornam enquanto leio Vivos na memória, de Leyla Perrone-Moisés (Companhia das Letras). Uma reunião de retratos nos quais Leyla reconstitui — tanto quanto isso é possível — seus encontros com grandes escritores e intelectuais. Roland Barthes, naturalmente. Michel Butor, Décio de Almeida Prado, José Saramago, Jacques Derrida. Como na capela funerária de meu pai, também eles se misturam. A memória não tem cancelas.
Chego à página 107, momento em que Leyla descreve um encontro com o argentino Julio Cortázar. Ela o visita em Paris. Leva consigo um pacote de livros enviados pelo amigo Haroldo de Campos. Faz muito frio e os dois se acomodam diante de uma lareira. Agasalham-se com as palavras.
Cortázar se entusiasma quando descobre que Leyla se dedica, naquele momento, a pesquisar a obra do conde de Lautréamont, o poeta francês nascido no Uruguai, autor dos Cantos de Maldoror. Sem espanto, Cortázar comenta: “Vejo frequentemente Isidore Ducasse na Rue de Richelieu”. A rua fica a poucas quadras dali. Isidore Ducasse é o nome verdadeiro do conde. O problema é que ele falecera um século antes — no ano de 1870. Leyla e Cortázar conversam em dezembro de 1968.
A paciente Leyla ainda tenta se amparar na literatura. “Achando que devia interpretar a declaração de Julio como uma metáfora, sorri”, ela rememora. Cortázar, porém, corrige seu sorriso: “Não ria, eu o vejo de fato”. Alguma coisa se racha. A realidade estremece. “Aos poucos, eu compreenderia que Julio vivia em nosso mundo real, mas também num mundo suprarreal cuja fronteira ele atravessava facilmente”.
Lendo o relato que Leyla faz de Cortázar, eu compreendo um pouco melhor minha mãe. Suas visões duplicadas e injustificáveis. Seus fantasmas — que lhe pareciam absolutamente reais. Sua conexão com os mortos. A união súbita entre dois mundos paralelos, que não deveriam jamais se tocar.
Falando ainda de Cortázar, Leyla continua: “Seu modo de ser nos levava a vê-lo, ao mesmo tempo, como um homem real e um ser de outro mundo”. Um homem em trânsito — um ser deslocado, sem uma posição fixa. Um trânsfuga. Alguém que habita um universo que se desdobra. Minha mãe, Lucy, nunca leu Julio Cortázar, mas devia ter lido.
Em uma entrevista antiga a Ernesto Bermejo, Cortázar contou que, certo dia, viveu dentro de si mesmo essa experiência de duplicação. Já estava em Paris, cidade em que se exilou, por vontade própria, no ano de 1951. Em um dia qualquer, subia, tranquilo, a Rua de Rennes. “Em certo momento soube — sem me animar a olhar — que eu mesmo estava caminhando ao meu lado”, diz. Foi tomado por “uma sensação de horror espantosa”.
Horror a si mesmo? Para se salvar, o escritor se refugiou em um café. Inspirando-se na experiência que vivia, tratou de pedir um café duplo. Nessa duplicação do duplo, o feitiço, ou o que seja, se desmanchou. “Fiquei esperando e logo compreendi que já podia olhar, que eu não estava mais ao meu lado”.
Essa descoberta, dizia Cortázar, se propagava, como uma peste, pelo mundo literário. Julgava, por exemplo, que Edgar Allan Poe e Charles Baudelaire eram, na verdade, a mesma pessoa. De fato, foram contemporâneos — ambos viveram na primeira metade do século XIX. Ocorre que Poe, que era americano, nasceu em Boston e faleceu em Baltimore. Já Baudelaire nasceu e morreu em Paris. Um oceano os separou. Nele, a tese de Cortázar parece naufragar. Mas naufraga?
Fecho o livro de Leyla e, por um tempo, me entrego à flutuação do pensamento. Também a literatura é um oceano. Para permanecer em Paris, salto para os escritos do filósofo Edgar Morin — que completou 100 anos de vida em julho. Em Conhecimento, ignorância, mistério (Bertrand Brasil), ele diz: “O universo traz em si uma tragédia insondável. […] Todas as filosofias de um mundo harmonioso veem nele apenas um aspecto e ignoram sua tragédia”.
O universo, diz Morin, vive entre a discórdia e a concórdia. “As galáxias colidem, as estrelas explodem, os cataclismos ameaçam o conjunto do mundo vivo”, descreve. Conclui o filósofo: “O universo é uma catástrofe permanente”. As certezas não existem. Caminhando por Paris, Julio Cortázar tentava se esquecer disso. A Paris turística é linda e estável. Contudo, outros universos, como fachos de luz, a atravessam.
Costumamos ignorar essa cisão. E por isso, quando nos deparamos com a inconstância e o imprevisto, quando o mundo se desdobra e o conde de Lautréamont passa bem debaixo de nosso nariz, preferimos não ver. Cortázar teve a coragem de ver — e levou a sábia Leyla a ver também.
Volto ao diálogo de Cortázar com Bermejo. A literatura, nos diz ele, é a exploração desse descontrole. Na ficção, molduras se quebram, cercas se rompem. Tudo vacila. Lembra Cortázar de sua experiência na escrita de O livro de Manuel, romance de 1973. Relato que carrega muitas frases e pensamentos que ele nunca pensou em escrever.
Em Manuel, ele rememora, “é comum um personagem fazer ou dizer alguma coisa ou seguir uma determinada direção apesar de eu ter uma vaga ideia de que ia tomar a direção oposta”. Escrever é perder-se. É desnortear-se. É surtar? Essas ideias parecem idealizadas, ou exageradas. Não são. “Vejo as frases nascerem com uma certa independência das minhas decisões, como se estivessem sendo ditadas por alguém”, diz Cortázar. Um duplo? O conde de Lautréamont em pessoa?
O universo se desdobra — como uma colcha que estendemos sobre a cama. De suas dobras, porém, o inesperado escorre. Admite Cortázar, por isso, que tem certa dificuldade em assinar seus contos. “Não estou certo de ser eu o autor deles”, afirma. Também o cotidiano não nos autoriza a ter certeza de respeito de nada. Em sua disparada pelo cosmo, o mundo é, cada dia mais, imprevisível. Resta-nos seguir.