Castello Rafael Olinto setembro.21

 

Chega de dogmas. É hora de inverter e transformar nossos hábitos mentais. Revirar o pensamento, experimentar novas perspectivas e olhares, arriscar reviravoltas, ou sufocamos. Arranco esses estímulos da leitura de Torto arado, o grande romance de Itamar Vieira Junior.

Na noite da quarta-feira 28 de julho, eu e a psicanalista Hena Lemgruber, minha parceira no projeto Extremos, tivemos a chance de conversar lentamente com Itamar. Foi um diálogo denso, feito na companhia do grupo de leitores que, pelo Zoom, nos acompanhou, ao longo de três meses, na travessia de Torto arado. Tivemos, ainda, meia centena de convidados.

Durante esses três meses, parágrafo a parágrafo, linha a linha, reviramos Torto arado — e chegamos a descobertas espantosas. Um romance de 264 páginas, feito de palavras fortes, que nos deixa diante da potência não só da língua, mas do silêncio. Silêncio carregado, sobretudo, por Belonísia, uma das duas irmãs que protagonizam o livro.

No passado, ela e a irmã Bibiana descobriram uma faca, embrulhada em panos velhos, na mala da avó Donana. Fascinadas, puseram-se a examiná-la. Em um acidente, Belonísia perdeu a língua — e com ela, a fala. O silêncio que a domina a partir daí é, no entanto, ensurdecedor.

A princípio, ela passa a acreditar que agora depende da irmã, Bibiana, para chegar aos outros. Mas Bibiana se casa e se vai. Sem ela, Belonísia aprende não só que pode manobrar o silêncio — que pode revirá-lo e recriá-lo —, como também, mais ainda, que possui outros recursos — instintivos, sensoriais, irracionais — para se comunicar com o mundo. Sim, o silêncio fala, e talvez mais ainda que as palavras que tanto cultuamos.

A perda da língua sugere, talvez, a importância da falta. A concluir que foi preciso a falta para que, a partir dela, Belonísia pudesse viver e se inventar. Mas será? Aqui, pensamentos dispersos me invadem. Eles me trazem, por exemplo, a figura do filósofo Ludwig Wittgenstein (1889–1951) que, em seus anos de exílio na Noruega, detido na solidão e no silêncio extremos, escreveu: “Tenho a impressão de ter conseguido trazer à luz ondas de pensamento que estavam confinadas dentro de mim”.

Sim, o silêncio e a solidão potencializam o espírito — mas isso será o mesmo que a falta? Lendo, sem parar, o audacioso Atlas, de Gonçalo Tavares, esbarro em uma ideia de Gilles Deleuze (1925–1995): a de que o desejo constrói seu próprio plano, que ele não tem falta de nada. Não é a falta que nos leva a agir e a criar. Não é preciso que algo nos falte para que busquemos um substituto.

A criação, mostra Deleuze, não é uma prótese. O desejo não parte da falta. A vida explode para todos os lados — o Cosmo está aí, em expansão contínua e enlouquecida, que não nos deixa mentir. O Cosmo nada deseja. Não busca coisa alguma, simplesmente avança e avança. Simplesmente cria.

Retorno a Belonísia. Não será a falta da língua que a move. Talvez essa ausência seja só um sinal de que ela pode avançar. De que pode ir além do que imagina ser. Bibiana, a irmã, não precisa perder a língua para seguir Severo, criar sua família, se transformar. Em resumo: o desejo não precisa da falta. Ao desejo, basta avançar. Basta criar.

Não é preciso que alguma coisa se ausente para que outra se coloque em seu lugar. “O desejo não tem falta e nem busca o prazer”, insiste Deleuze, ainda na voz de Gonçalo. Não é uma descarga de prazer que o interrompe. Ele não tem objetivo. Não tem objeto. Ele não quer nada. Só quer mais.

Também a literatura não deseja coisa alguma. A literatura, nos lembrou Itamar durante nosso diálogo, não está só nos livros. A ficção está por todos os lados — nas conversas, nas fofocas, nos sonhos, na esperança. Em seu célebre O direito à literatura, Antonio Candido (1918–2017) já nos mostrou isso. A ficção está por toda parte. Ela não é privilégio dos escritores, ou dos livros. Ela é a cola do mundo. Sem ela, tudo desaba.

Lembra-nos Itamar que, embora estejamos hoje mergulhados em uma ficção “de quinta categoria”, a que chamam de fake news, nem por isso a ficção perdeu sua dignidade. Explodindo para fora dos livros, ela se impregna na vida, e talvez seja a própria vida. Ocorre-me aqui uma frase que ouvi de Livia Garcia-Roza: “Da fricção do imaginário com o real nasce a ficção”. A ficção — a mentira — nunca está excluída.

A ficção não é uma prótese — um estepe, ou sobressalente, que se coloca no lugar do pneu descartado. Essa redução lhe confere uma categoria de segunda mão que ela não merece. Que não diz o que a ficção é. Belonísia, a grande personagem de Itamar, nos mostra isso. Sem a língua, ela grita, não para substituir o que perdeu, mas para avançar em outra direção. O que ela faz é um desvio, não uma substituição.

Itamar me traz de volta às ideias, sempre luminosas, do argentino Juan José Saer (1937–2005). Em A narração-objeto, que leio e releio sem parar, Saer nos diz: “O rechaço da ficção não é garantia de verdade”. A verdade não é o contrário da ficção. A ficção não mente; em vez disso, abre novas rotas. Grita — mesmo sem a língua, como Belonísia. Grita — ainda que fora dos livros, como Antonio Candido ensinou.

“A ficção não põe em dúvida a verdade”, insiste Saer. “Ao contrário: realça seu caráter complexo”. Existem muitas vias a seguir. O Cosmo se abre para infinitos lados, caminhos paralelos se multiplicam — e um não é o substituto, ou a prótese do outro. A ficção não resolve problemas, mas incorpora problemas.

Volto, uma vez mais, ao Atlas, de Gonçalo Tavares. “O desejo é como um cão que aceita ser guiado por uma coleira apenas porque sabe que, quando quiser, a quebra”. Não é a falta (da língua) que leva Belonísia a avançar. A rigor, ela descobre que não precisa da língua para falar e não precisa da língua para desejar. Insiste Gonçalo: “O homem quer fazer porque tem desejo, consegue fazer porque tem cérebro”.

Belonísia nos prova isso. Gosto de admirar os pintores, quietos diante de suas telas. Os músicos que, sem precisar das palavras, se debruçam sobre suas partituras. Gosto de escutar o silêncio que os envolve. Ali, onde nada há a dizer, algo se diz. É do nada, e não da falta, que eles arrancam suas obras.