No infeliz ano de 1964, Clarice Lispector publicou A legião estrangeira, seu segundo livro de contos. Apesar da força de seus relatos, o livro não mereceu muita atenção. Acontece que, no mesmo ano, Clarice publicou também A paixão segundo G.H., sua inegável obra-prima. Um livro se sobrepôs a outro livro. Clarice eclipsou Clarice. A legião estrangeira, admitiu depois a própria escritora, ficou inteiramente abafado pelo romance.
No interior de edições antigas da coletânea quase esquecida, existe uma segunda parte, ainda mais depreciada, que Clarice batizou — de modo corajoso, mas severo — de Fundo de gaveta. Um depósito de relatos que ela considerava imperfeitos, ou inacabados. Chegou a dizer que nele reuniu “aquilo que se amontoou, como em todas as casas, no fundo das gavetas”. Sobras, restos, pequenas ruínas. Coisas desprezadas, ou à beira do descarte.
A avaliação da escritora é impiedosa. Até porque, entre essas narrativas rejeitadas, encontramos Mineirinho, um dos textos mais fortes e corajosos que Clarice escreveu. Quase sessenta anos depois, o relato conserva verdades arrepiantes. Relido hoje, fala de nosso apocalíptico século XXI. Volto a ele, com os nervos arreganhados de espanto.
Mineirinho, narrativa que fica na fronteira entre a ficção e a crônica, se inspira na história de José Miranda Rosa, um fugitivo que se escondia nas favelas do Rio de Janeiro. Foi um dos homens mais procurados pela polícia na década de 1960. Acusado de assaltos e atentados, e condenado a mais de 100 anos de prisão, Mineirinho — como ficou conhecido —, ainda assim, fugiu por três vezes do Manicômio Judiciário.
Sua história, que mistura de fatos e lendas, foi adaptada para o cinema, em 1967, pelo diretor Aurélio Teixeira. No filme Mineirinho vivo ou morto, o fugitivo é encarnado por Jece Valadão. O cineasta nos traz um Mineirinho muito mais humano do que o monstro que frequentava o noticiário policial. Teria sido só um homem comum que se envolveu em uma briga de bar, no Morro da Mangueira, para defender uma desconhecida. Por gratidão, a mulher o escondeu, depois, em seu barraco.
Considerado pela imprensa escandalosa como “Inimigo Público Número Um”, ele passou a ser visto, no entanto, como um benfeitor do Morro da Mangueira, onde dava proteção aos moradores e organizava o submundo. Perseguido pela polícia, Mineirinho terminou morto. Assassinado, com ferocidade, por treze tiros. Sim: treze tiros, quando um só bastava. Foram essas treze balas, mais ainda que a morte de Mineirinho, que levaram Clarice a escrever seu conto.
Reflete a narradora: “A primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás”. Em um país no qual não existe a pena de morte, essa execução sumária se torna ainda mais bárbara. Nem os piores crimes que Mineirinho possa ter cometido justificam um justiçamento irracional, que ultrapassa a lei. Que a rasga. “Não matarás”, diz a lei e isso deveria valer para todos, em quaisquer circunstâncias.
Clarice descreve, passo a passo, seus fortes sentimentos diante da execução de Mineirinho. Admite que ouve o primeiro e o segundo tiro “com um alívio de segurança”. Afinal, e de alguma forma, ela escapa da morte. Se ainda pode ouvir, é porque não é ela, mas um outro, quem morre em seu lugar. O terceiro tiro, porém, a deixa alerta. O quarto, desassossegada. “O quinto e o sexto me cobrem de vergonha”, escreve. E mais: “O sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror”.
No novo e no décimo tiros, sua boca está trêmula. Já é ela também, e não só Mineirinho, quem morre. No décimo primeiro tiro, “digo em espanto o nome de Deus”. A brutalidade ultrapassa qualquer coisa que se possa atribuir ao humano. Torna-se diabólica. Só o nome de Deus a ela se contrapõe. No décimo segundo, Clarice chama por seu irmão. Alquebrada, quase morta também, precisa de um outro que a ampare. “O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro”.
Clarice Lispector fala, assim, de coisas que perdemos sem nos dar conta. A fraternidade — que ultrapassa qualquer circunstância, por mais intolerável que seja. A humanidade — que se mistura com a clemência e com a mansidão, que hoje tanto nos faltam. Em um país armado e sempre pronto para a vingança, nenhum desses sentimentos faz mais sentido. Tornam-se obsoletos. Ela fala, ainda, da alteridade — a experiência de que os outros estão inexoravelmente separados de nós, que não podemos e nem devemos controlá-los, o que nos leva ao respeito e à empatia. Que a vida do outro não está em nossas mãos.
Fala, por fim, da “violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar”. Em resumo: nem as piores violências que Mineirinho possa ter cometido justificam os treze tiros. Com a licença do Marquês de Sade: só a ideia do sadismo — que hoje se tornou sinônimo de virilidade e potência — talvez possam explicá-los. A crueldade, a inclemência, o gozo com a dor alheia. A perversidade.
Vou ao dicionário etimológico do doutor David Zimerman para me informar melhor. Nele relembro que a expressão “sadismo” foi criada em 1886 pelo sexólogo alemão Krafft-Ebbing. E que ele se inspirou no escritor francês Alphonse François, mais conhecido como Marquês de Sade. A palavra se refere a “agressões físicas, domínios sufocantes, flagelos e humilhações”. Fala do bárbaro. Do bestial.
Posso pensar, ainda, na crueldade. O prazer com o sofrimento alheio. O júbilo com o sangue. Um tiro basta para matar — mas, ainda assim, em um país que felizmente repudia a pena de morte, também ele é intolerável. Criminosos devem ser julgados, e não mortos. Mas treze tiros já falam de um gozo — de um prazer que é o reverso da dor do outro. Falam, por fim, do júbilo com a destruição.
Parece que hoje, mais do que nunca, esse gozo se tornou não só aceitável, normalizado, como tristemente valorizado. Um vício que, mostra Clarice, vem de longe. Há sessenta anos, a visionária Clarice Lispector já o identificava na morte de Mineirinho. Ela o observava não só com repúdio, mas com vergonha. Talvez a vergonha a tenha levado a esconder seu relato em um fundo de gaveta. Não há hora mais urgente para relê-lo.