Castello Guilherme de Lima junho.21

 

 

Em um cenário de extremos, cada dia mais próximos ao abismo, exterminar o presente, retornar a um utópico ponto zero, “destruir tudo” se torna o grande — e insano — ideal. O ideal impossível de, enfim, se aconchegar em um centro. Em um paradoxo tenebroso, a morte passa a ser vista como um instrumento de vida. A morte se torna a própria vida. Negociar e dialogar, ao contrário, são tidos como vícios. Sinais de covardia, de frouxidão, de medo. Talvez de estupidez.

Para fugir dessa paisagem hostil, em que todas as pontes ruíram, salto para a arte. Na história da arte, a utopia do ponto zero é antiga. Ela regeu, em especial, as vanguardas do século XX. Grandes artistas a abraçaram. Nas artes visuais, poucos foram tão longe, talvez, quanto o pintor catalão Joan Miró (1893–1983).

Em um ensaio notável, o poeta João Cabral de Melo Neto (1920–1999) medita sobre a obsessão de Miró pela ruptura. Diplomata de carreira, Cabral viveu por quatro temporadas na Espanha. Duas delas — em meados dos anos 1950, e uma década depois —, justamente em Barcelona, a cidade em que Miró nasceu, no ano de 1893.

O poeta e o pintor se tornaram amigos. Cabral se espantava com a obsessão de Miró pelos primórdios. Pela gênese. O artista catalão não queria avançar, queria retornar. “Miró não realizou um sistema de composição. Não existe uma gramática Miró”, Cabral diz. “O que constitui sua maneira de compor não pode ser reduzido a leis”. Os grandes vanguardistas seguiram os preceitos de estéticas, ou de manifestos. Quebravam uma lei para colocar outra em seu lugar. Só Miró não perseguiu lei alguma. O zero foi seu ideal.

Criado na tradição do Renascimento, Miró viveu em luta contra essa herança. Não buscou, porém, construir leis contrárias à dos grandes pintores renascentistas. Não quis substituí-las, repará-las, ou usá-las pelo avesso, diz Cabral. “O que Miró parece desejar é desfazer-se delas, precisamente porque são leis. Livrar-se delas, lavar-se”. Retroceder ao ponto morto. Abandonar tudo. Matar-se?

Em Miró, nos diz Cabral, não se trata de substituir uma estética por outra. Ele pinta para destruir a própria ideia de estética. Deseja chegar a um ponto “anterior à pintura”. Comporta-se como se ele, Joan Miró, fosse o primeiro pintor da História. Como se a pintura começasse a partir dele. Como se voltar a esse zero absoluto, anterior à História, fosse realmente possível.

A negação total de qualquer método, ou lei, é seu credo. Pintou guiado pela morte. Renegou todo aprendizado. Destruiu o princípio da terceira dimensão — marca fundamental dos pintores renascentistas. Descartou, ainda, os desejos de estabilidade e beleza. Perseguia uma terra original, selvagem e agreste, anterior à História. Uma terra anterior à criação.

No lugar da estagnação, Miró colocou o ritmo e a velocidade. Contra o imóvel, introduziu a ideia de energia, que inclui esforço e atividade contínuos. “Com essa energia, Miró se liberta da moldura”, diz Cabral. A moldura segura e equilibra a arte do Renascimento. Abandonando-a, Joan Miró, ao contrário, lançou a arte no abismo. Em um paradoxo, movida por esse empurrão, a arte se tornou mais forte ainda.

Miró, um anarquista? No lugar da hierarquia e da ordem, o imprevisível. Na arte de Miró, nos lembra Cabral, o ideal da destruição conduz ao assombro. “É a luta do costume contra a surpresa”, resume. O Renascimento criou o hábito do automatismo. Com o tempo, a arte renascentista se tornou acadêmica. Sua energia original se perdeu. Foi para resgatar essa energia que Miró pintou.

Diz, ainda, João Cabral: “A pintura, aos poucos, ficou só com cadáveres de problemas. Tanto vale dizer: de problemas resolvidos, de leis”. Entre os cadáveres de uma estética esgotada, Joan Miró pregou a ausência da lei. Contra uma sensibilidade automática e o vício da beleza, preferiu a vida — que é movimento e laços. É caos. E nem sempre é bela.

Acontece que com Miró, em vez de despencar no abismo, a pintura alçou voo. Mesmo renegando a lei, Cabral diz, o artista precisou fazer escolhas e desenhar novas apreciações. Precisou julgar — ou não conseguiria pintar. Necessitou, contra seus próprios desejos, da presença de uma lei. Reconhece o poeta, sem disfarçar sua decepção: “Nisso ele se assemelha ao artista automatizado de seu tempo, usa também o critério de seu gosto, a reação de sua sensibilidade.”

Para João Cabral, a pintura de Miró “não é só um formalismo a mais” — como, em geral, avaliam os críticos. “Ela é uma luta para devolver à pintura uma liberdade de composição há muito perdida”. É uma luta que nunca se vence. Uma luta contínua, na qual o artista é sempre derrotado — ou a morte o traga. A luta é o movimento, é a energia. A luta é a arte. Mesmo perseguindo um ponto anterior à pintura — um ponto zero e morto —, Miró continuou a pintar. No fundo, em vez de se lançar no abismo, é do abismo que ele escapa.

O extremo em que o pintor catalão se instala não o leva à destruição. Ao contrário: o arrasta para dentro. Ele o reconduz ao interior da própria arte. Não o abismo e a morte, mas a vida. Sua experiência nos ajuda, talvez, a observar os extremismos que hoje, entre nós, se disseminam. Extremismos dos adoradores da morte — que buscam o ponto zero não para criar, mas para aniquilar. Não para celebrar a liberdade, mas para exterminá-la. Não para renascer, mas para morrer.

Postados à beira do abismo, tanto podemos nos renovar — e a lição de Miró está aí —, como nos lançar no desfiladeiro. A questão para nós é: como retirar de uma sociedade que se esgarçou, que chegou a seu limite, como arrancar de uma sociedade tensa e aflita, à beira do esgotamento e da morte, um sentido da vida?

Os mornos e os indecisos falam, hoje, em um “caminho do meio”. Em encontrar um centro. Acontece que no meio não existe um centro, existe um abismo. Sabia o pintor que a mornidão não leva a lugar algum. Lançados nos extremos, tudo o que nos resta, agora, é construir pontes. Foi o que fez Joan Miró: ao chegar no extremo da pintura, em vez de se despedaçar na morte, construiu uma nova rota. Traçou novos laços com a arte. Preferiu, mais uma vez, a vida.