Castello Guilherme de Lima maio.21

 

Completa-se um ano que o escritor Sérgio Sant’Anna nos deixou. Ele faleceu em maio de 2020, levado pela covid. A inquietude e o pluralismo marcam sua obra, composta por vinte livros de ficção. A cada um, Sérgio se transforma em um novo escritor. Desmente a si mesmo, se ultrapassa, e até mesmo se nega, em um frenesi intelectual que só a morte interrompeu.

Revisito a obra de Sérgio e me detenho em O monstro (Companhia das Letras), seu décimo-terceiro livro, de 1994. Não teve o sucesso de A senhorita Simpson, de 1989. Não ganhou grandes prêmios como O voo da madrugada, vencedor do Portugal Telecom (atual Prêmio Oceanos) em 2004. Na época, admito, eu também não cheguei a entender a grandeza do livro. Estamos sempre aquém dos grandes livros que lemos.

Muitas ficções crescem com o tempo. O monstro, também o nome de um dos contos do livro, é uma delas. Hoje, em pleno inferno da pandemia e atordoados pela insanidade política, o relato de Sérgio Sant’Anna, de apenas 34 páginas, se torna ainda mais vivo. Lança luzes fortes, devastadoras, sobre a catástrofe que vivemos. Agita o espírito e faz pensar.

O monstro é uma entrevista, no estilo pergunta e resposta, publicada pela imaginária Flagrante. Nela, o professor de filosofia Antenor Lott Marçal, de 45 anos, dá um depoimento ao repórter Alfredo Novalis. Não fala, porém, de sua vida acadêmica, ou intelectual, mas sim de um crime bárbaro que cometeu. Antenor é um assassino. Antenor é o monstro.

Ele e sua amante, Marieta de Castro, de 34 anos, atraíram para seu apartamento a jovem Frederica Stucker, de 20 anos. As duas mulheres se conheceram pouco antes, durante uma caminhada na orla da Lagoa, no Rio. Convidada para uma visita, Frederica não percebe a armadilha de sedução e perversidade em que se envolve. Conversam, divertem-se, bebem, consomem drogas. Frederica enfim adormece. É estuprada. Por fim, para que ela não possa revelar o que lhe aconteceu, é morta.

O que mais assombra no relato de Sérgio Sant’Anna não é só o crime bárbaro. No momento da entrevista à Flagrante, Marieta de Castro, a assassina, já está morta. Quando percebeu que seu crime seria revelado, cometeu suicídio “Marieta era uma força selvagem da natureza”, Antenor a descreve. “Era como um bárbaro cultivado, que podia transformar-se em uma fera.” Ao saber do suicídio, o professor entendeu que tudo se acabara. “Eu não sentia nada além da vontade de ficar sozinho numa cela.” Entrega-se.

Já preso, Antenor decide dar uma entrevista. Uma única e última entrevista. Nela — em uma maquinação fabulosa — Sérgio Sant’Anna expõe o esforço de seu personagem para mostrar que, sob o assassino monstruoso, um homem ainda respira. O próprio repórter, Alfredo, se esforça para justificar a reportagem que faz. Diz que a realizou “para uma reflexão sobre os mecanismos existenciais e psicológicos que estão presentes na prática de crimes hediondos”. Camufla, sob o trabalho jornalístico, o desejo inconfessável de revelar a doçura do monstro.

O relato de Sérgio nos faz pensar nas boas intenções e nos princípios “éticos” que, hoje, encobrem tantas barbaridades. A brutalidade, o ódio, o preconceito, a inclemência se tornaram valores positivos. Um número cada vez maior de pessoas não só os exibe sem pudor, mas deles se orgulha. Envolta em justificativas supostamente honradas, a monstruosidade torna-se legítima. O horror impera.

Não é que o repórter Alfredo Novalis justifique o crime medonho de Antenor Marçal. Ou que ele chegue a se tornar um parceiro emocional dos assassinos. Não, ele não faz isso. Ao longo da entrevista, porém, o repórter se empenha, todo o tempo, para chegar às supostas origens benignas da crueldade. Sim, houve um crime, ele não nega, não pode negar. Contudo, Novalis luta para revelar as boas intenções e os sentimentos “humanos” que o moveram.

Em um paralelo tortuoso e horripilante, podemos pensar: haveria algo de benigno, por exemplo, nos fanáticos que hoje espancam indefesos movidos pela intenção de “livrá-los do mal”? É legítimo praticar a maldade em nome da ética? Em poucas palavras: pode haver bem no mal? Por fim, Sérgio nos deixa outra pergunta desagradável, mas igualmente necessária: seria o repórter Alfredo Novalis também um monstro?

Já no início do depoimento, Antenor se apega à tese do “incompreensível”. Diz ao repórter: “Certos atos ultrapassam de muito qualquer possibilidade de análise”. Com essa hipótese, abdica da posição de sujeito e se apresenta, ele também, como vítima do que não podemos controlar. Atribui seu ato, ainda, à amante suicida, Marieta, que lhe despertava uma constante “sensação de perigo”.

A morta, Frederica, era, além de tudo, deficiente visual — o que torna o crime ainda mais perverso. Diante dela, insiste o professor, ele se viu dominado por “sentimentos além da razão”. Culpa Marieta e se apresenta como um escravo emocional da mulher, a quem dizia aceitar “sem restrições, com todos os seus desejos e caprichos”. Afirma, ainda, que tinha com ela uma “relação espiritual”. Buscavam uma “transcendência” — e matar teria sido a realização desse desejo. De novo: o mal como caminho para o bem?

Nem a beleza inocente e o desamparo de Frederica os detiveram. Doparam-na com éter. Depois, Antenor se apossou da bela adormecida. Tentou consumar o sexo “da forma mais amorosa e delicada possível”. Satisfeito, como se estivesse à beira de uma piscina, põe-se a ouvir um disco de Chet Baker. O casal larga o corpo em um matagal deserto. Depois, relata ainda Antenor, ele passou a viver “numa trajetória moral, e até espiritual”. A brutalidade como purificação?

Quando o repórter lhe pergunta se não se vê como um monstro, Antenor Marçal diz: “Se você tiver a psicologia de uma criança em um adulto dotado de força e inteligência, eis o monstro”. Haveria em todo monstro um resto da infância? Haverá doçura na crueldade? Preferiu confessar o crime para não se dissociar de seu destino trágico. Não se acha desumano. Pensa que estamos sempre expostos ao terrível.

Com delicadeza e perícia, Sérgio Sant’Anna desmonta, em O monstro, a psicologia de tantos homens e mulheres que hoje, serenamente, praticam a brutalidade em nome da justiça. Matam — com drogas, com armas, com negações — em nome da vida.