Castello Guilherme de Lima abril.21

 

 

A cada desprezo pela História, a cada deformação da verdade, a memória se enfraquece. “Apagar o passado” é hoje, em todo o mundo, uma obsessão dos negacionistas. Em vez de construir, destruir. Estilhaçar. Exterminar. No lugar da verdade, a falsificação. Muitos se limitam a reduzir essa simpatia pela mentira a uma doença, ou mesmo a uma forma de loucura. Na verdade, ela está no centro de uma noção de progresso baseada na segregação, no apagamento e na exclusão. Uma ideia perversa de futuro que domina nossos tristes dias.

Apesar de tudo, a memória persiste. Sempre persiste. A memória – justamente ela – me ajuda a dizer o que tento dizer. Em uma longa conversa que tivemos no ano de 1999, na Ilha de Lanzarote, Canárias (Espanha), o escritor José Saramago rememorou, ainda aturdido, sua experiência pessoal com a aniquilação do passado. Tudo começou quando eu lhe disse que, antes de retornar ao Brasil, eu pretendia visitar a aldeia de Azinhaga, no Ribatejo, onde ele nasceu no ano de 1922.

“Não perca seu tempo. Não há mais nada lá. Minha infância desapareceu”, ele me diz. Quando tinha dois anos de idade, a família se mudou de Azinhaga para Lisboa. Até a adolescência, porém, os pais cultivaram o hábito de voltar ao Ribatejo para rever o passado e reencontrar amigos. Zezito – como ele era chamado em casa – os acompanhava. Esses reencontros foram decisivos em sua formação, ele me assegura.

“Só eu sabia, sem consciência de que o sabia, que ainda teria de voltar a Azinhaga para acabar de nascer”, Saramago relata em seu As pequenas memórias, livro de 2006, em que repisa os primeiros anos de vida. Mesmo mais tarde, por algumas vezes, ainda visitou a terra de sua infância. “Senti-me sempre marcado por ela.” Hoje com 2 mil habitantes, Azinhaga está às margens do Rio Almonda que, logo depois, deságua no Tejo. A aldeia é uma das mais antigas de Portugal. Desde o século XVII, ela está cercada de oliveiras. Porém, com o surgimento do euro, nos anos 1990, latifundiários começaram as comprar as terras da região, arrancaram-lhes as oliveiras e transformaram tudo em um imenso campo de milho.

Comentei com Saramago a tristeza que sinto quando, viajando pelo interior do Brasil, encontro a paisagem encoberta por um imenso canavial. A mesma sensação de deserto e de derrota. A mesma certeza de que, em nome da modernização e do lucro, toda uma história é sumariamente apagada. “Azinhaga também foi devorada. E, com ela, meu passado”, o escritor me diz. Em seu As pequenas memórias, ele ainda relativiza essa decepção. “Não estou a queixar-me. (…) Estou só a tentar explicar que esta paisagem não é minha, que não foi neste sítio que nasci.”

José Saramago foi um adolescente contemplativo. Um melancólico, como ele mesmo define. Em seu terceiro romance, Levantado do chão, de 1980, livro em que nasce o estilo caudaloso que caracteriza sua obra, ele retorna ao Alentejo. Já é quase um sexagenário. A idade lhe permite observar melhor a vida de privações de seus vizinhos de aldeia. Decepcionados com a paisagem árida e com os poucos ganhos trazidos pelo agronegócio, os moradores de Azinhaga, anos mais tarde, voltaram a plantar oliveiras. Elas ainda estão pequenas, têm dificuldades para crescer. A teimosia, porém, é uma maneira de impor a verdade.

Em Azinhaga, Saramago rememora, ainda é possível, apesar de tudo, “escutar o silêncio”. As impressões de rapaz nunca o abandonaram – apesar de tudo, a memória resistiu. Houve uma noite de ventos em que, caminhando entre as ervas, ouviu o murmúrio áspero da vegetação. Era quase um choro. “Foi um instante, nada mais que um instante”, descreve em seu livro. “Mas a lembrança dele durará o que a minha vida tiver de durar”. Quando morreu, em junho de 2010, em Lanzarote, o escritor por certo ainda ouvia esse rumor antigo.

Mesmo atropelada pelo progresso louco, a memória conserva sua força. É capaz, até, de preservar o que nunca existiu, mas apenas se sonhou. Desde os oito anos de idade, Saramago tinha o desejo de subir no cavalo do tio Francisco Dinis. Nunca teve a chance de fazer isso. Já rapaz, enfim, montou pela primeira vez um cavalo. “Um daqueles cavalos sorumbáticos do Sameiro, pensando que talvez pudesse indenizar-me na adolescência do tesouro que me havia sido roubado na infância.” O animal se arrastava, a experiência foi decepcionante. Muitos anos depois, o escritor descreve uma ferida deixada pelo cavalo que nunca montou. Desde jovem – talvez só ele perceba isso –, o escritor claudica quando anda. Ou acha que claudica. “Ainda hoje sofro dos efeitos da queda de um cavalo que nunca montei”, ele me diz.

A memória – que nenhum censor, ou negacionista apaga – conserva intato, ainda, o desejo infantil de se tornar maquinista de trem. “Chegando a Azinhaga, como reencontrar essas pegadas do passado?”, eu lhe pergunto. Saramago me diz que, já que insisto mesmo em ir, devo procurar pelo barbeiro José dos Reis. “Há cinco anos, estive na aldeia. Conversamos muito. Ele conserva a memória.” Recorda – sem esconder a ironia — que, em Azinhaga, agora existe uma Rua José Saramago. “Mas isso não vai lhe dizer nada”, ressalva. Nunca fiz minha viagem a Azinhaga.

Contra a fúria dos que se empenham em destruí-la, indiferente aos indiferentes, a memória se conserva nas frestas do real. Ela se infiltra, ainda, nos nomes. O pai do escritor se chamava José de Sousa. Saramago – o nome de uma hortaliça – era só uma alcunha. Ao registrar o filho, o escrivão lhe perguntou qual seria o nome do menino. “Vai se chamar José como o pai”, limitou-se a dizer. O tabelião não teve dúvidas: colocou no registro o sobrenome Saramago. Só na escola primária, quando o menino já tinha sete anos, o pai se deu conta do engano. Em Lisboa, ele só era tratado como o “Sr. Sousa”, nunca como o “Sr. Saramago”. O filho herdou um nome que não existia.

Em respeito aos apelos da memória, o pai se dirigiu a um cartório para mudar o próprio nome. Tornou-se José de Sousa Saramago. Ainda perplexo, o escritor me diz: “Sou o único caso em que o filho deu nome ao pai”. A memória não se apaga. Podemos rasurá-la, deformá-la, falsificá-la, mas ela persiste. Ainda bem.