Castello Guilherme de Lima marco.21

 

Todos estamos cansados. Muito cansados. Exaustos. A fadiga é a sensação que melhor define o presente. Uma pandemia que parece interminável. Um cenário político tosco, bruto, em que nada funciona, só a destruição. Um mundo sem saída, devastado pela miséria e pelo ódio. O sentimento de que o gênero humano fracassou. E talvez nem venha a sobreviver por muito tempo.

Também cansado, completamente exaurido, moído, eu luto para reagir. Arrisco-me: talvez alguma coisa se possa tirar desse esgotamento. Quem sabe? Não resta muito a fazer, a não ser tentar. Apego-me, então, ao Ensaio sobre o cansaço, que o escritor austríaco Peter Handke escreveu em 1989 durante uma temporada em Linares, na Andaluzia. Há uma tradução recente de Simone Homem de Mello para a Estação Liberdade.

Quando escreveu seu ensaio sobre o cansaço, Handke tinha 47 anos. Hoje está com 78. Vive agora recolhido em Chaville, uma pequena comuna cheia de florestas na periferia de Paris. Homem discreto, envolveu-se, porém, em situação muito séria quando, nos anos 1990, durante a Guerra da Bósnia, posicionou-se contra a OTAN, defendendo o regime de Slobodan Milosevic e denunciando os ataques a Belgrado, na Sérvia.

Em 2019, Peter Handke recebeu o Nobel de Literatura. Mesmo que sua posição tenha sido detestável, parece haver algo na obra dele que nos permite pensar esse mundo de bestialidade e ignorância. Talvez ele me ajude. Em nosso presente, afora a repetição de velhos bordões, pensar não tem sido fácil.

Afirma Handke que os grandes cansaços “nunca ocorrem sem motivo, mas sempre após alguma coisa árdua, na travessia, na superação”. Por exemplo, o cansaço dos velhos — que atravessaram uma difícil existência, se esgotaram, muitos quase morreram, mas sobreviveram. O cansaço lento da velhice só vem depois de uma sucessão de desgraças — embora, também, de alegrias. Há um caminho e um tempo para cansaço.

Na velhice, Handke reflete, o cansaço “diz menos sobre o que é para se fazer e mais sobre o que é para se deixar de fazer”. Pergunto-me: não será disso — uma limpeza radical no pensamento, uma faxina que elimine todos os supérfluos — que hoje precisamos? Se nada funciona, talvez devêssemos inverter a pergunta clássica. Talvez precisemos nos perguntar não sobre o que fazer, mas sobre o que devemos deixar de fazer. Para, só então, chegarmos ao que realmente funciona.

Lembra Peter Handke que os maiores cansaços são coletivos. Quando menino, ele se envergonhava de seu cansaço, julgando que o esgotamento fosse resultado de desarranjo íntimo. “O cansaço dentro de um quarto, sozinho, o cansaço-a-sós”, ele rememora. Quando começou a trabalhar com a família, debulhando grãos no campo, descobriu, porém, que dividia com os outros o “cansaço da repetição monótona”. Deu-se conta, então, da existência de um cansaço coletivo. Uma espécie de peste.

Outros cansaços vieram. Mais tarde, na vida amorosa, experimentou um “cansaço que quebra tudo”. Um “cansaço sem fala”, que surge quando as relações se esgotam e elas se aproximam da catástrofe. Embora íntimo, o cansaço amoroso destrói tudo a seu redor. Ainda assim, é um cansaço que podemos superar. Não é um cansaço sem solução.

Handke lembra de ver, pouco depois do fim da Segunda Guerra e ainda menino, o cansaço sem solução dos homens fracos que, embora sobreviventes, “parecem nervurados, franzinos, além de delgados e frágeis”. Um cansaço sem saída, dentro do qual nos sentimos fracos demais até para reagir. Um cansaço que se mistura com a catástrofe, ou que é a própria catástrofe.

Não, não posso aceitar que este cansaço terminal seja o cansaço que hoje vivemos. Existem outras brechas. Peter Handke diz que, mais tarde, já na faculdade, trabalhava algumas horas por dia em uma loja de departamentos. Sua tarefa: desmontar caixas de papelão. Quando o expediente terminava e ele saía pelas ruas, “de repente, sozinho, no meio do meu cansaço, […] eu ganhava novos olhos para imagem familiar da rua”. Um cansaço que desmonta nossos padrões e expectativas, que reativa nossa coragem. Desse cansaço, sim, estamos precisando.

Pensa ele que pode haver não só um sentido, mas alguma beleza no cansaço. Lembra, a propósito, de um filme de Alfred Hitchcock em que Ingrid Bergman, enquanto abraça um exausto Cary Grant, murmura: “Que o senhor me permita, mas um homem cansado e uma mulher bêbada formam um belo par, não acha?” Nesse sentido, Handke se arrisca a pensar que o cansaço, em certos casos, pode ser a cura da melancolia. Ele pode ser um remédio, e mais, pode se tornar um amigo. Uma espécie de intervalo no qual as manias, os tiques, as repetições desaparecem e algo novo enfim aflora.

Será que, mesmo exaustos, destruídos, podemos esperar algo novo do cansaço? Lembra Handke que há circunstâncias em que o cansaço leva a uma profunda paz e ela, em vez de instaurar a apatia e o deserto, nos ajuda a “ver o todo”. Talvez o cansaço sirva mesmo como um mirante desde o qual, finalmente, podemos observar, de modo mais sereno, o mundo em que vivemos. No cansaço, ele diz, “o mundo toma forma”.

Sob um bombardeio de informações, desastres e mortes, que já nem conseguimos chorar, pode ser que, desarmados, destruídos, possamos recuperar a visão dos detalhes. Peter Handke rememora um passeio que fez em um bosque, em Medea, pequeno vilarejo italiano. Desanimado, exausto, de repente parou para observar um par de patos, uma corça e um coelho. Surgiu também um cachorro — e ele não gosta de cães. Recorda: “Eu estava tão cansado que nem tive o usual medo de cachorro”. O cansaço não só paralisa — ele transfigura. De repente, esgotados, “somos outros”. Pensar nisso não traz alguma esperança?

Para Handke, as modificações promovidas pelo cansaço extremo levam à ação. Uma nova ação — não aquela a que nos habituamos. “O cansaço dá lições — é aplicável”. Lições de que? “Ele em si já é uma iniciativa, um fazer”. O cansaço nos incita a fazer aquilo a que não estávamos acostumados. O cansaço transforma. E abre novos espaços. Aponta para coisas que nunca pensamos em fazer, mas que, talvez agora seja, enfim, o momento de fazer. Cansados do que fomos, podemos, enfim, renascer.