Invade-me uma lembrança antiga. Ainda uso calças curtas e estudo com os jesuítas. Um dia, meu padre confessor me passa uma instrução: devo ter um caderno para anotar diariamente meus pecados. Um caderno pequeno, discreto, quase invisível, que seja só meu. E naturalmente de meu confessor também.
Peço ao meu pai que me compre um caderno de bolso. Ele me traz um caderno azul. Eu o escondo sob o travesseiro. Toda noite, mortificado, anoto meus pecados. Coisas tolas: uma mentira para minha mãe, um sentimento de raiva, o furto de algum objeto inútil. Naquela época, o sexo ainda não me agitava.
Fui um menino tímido, atrapalhado, tolo. Nunca sabia onde esconder meu terrível caderno. No dia das confissões, eu o carregava dentro da calça, como um revólver. Sim, ele podia me matar. No confessionário, em voz trêmula, relatava meus males. O padre repetia: “Continue a anotar. Sempre. E não deixe que nada lhe escape”. Eu me tornava meu próprio caçador.
Um dia, assistindo à missa em outra igreja, decido me confessar. “Não trouxe meu caderno. Não sei se vou lembrar de tudo”, aviso ao confessor. O padre, um velho com face de papelão, me pede que explique a história do caderno. Sou detalhista. Não escondo nada. Ele me interrompe: “Você é muito escrupuloso”. Passa-me uma breve penitência e me manda embora.
Em casa, corro ao dicionário. Entre os vários sinônimos de “escrúpulo”, encontro alguns que me interessam muito: “hesitação”, “receio”, “medo”. Naquela tarde, sem nenhuma culpa, rasgo meu caderno em mil pedaços e o atiro no lixo da cozinha. Entre restos de comida, borras de café, jornais velhos. Ali, entre restos, onde ele merece estar.
Meu confessor queria me controlar. Eu não podia falhar em nada. Ele queria que eu fosse um menino perfeito ou, pelo menos, que eu desejasse ser isso. Passei a desprezar a perfeição. Anos depois, abandonei a Igreja.
De tudo isso, ficou o ódio à perfeição. Abominável perfeição. Uma espécie de mordaça que nos leva ao imobilismo. Ainda hoje, de cabelos brancos, observo o mal que a perfeição nos faz. Basta olhar para as mulheres, com suas dietas loucas, suas cirurgias estéticas. Corrigir, emendar, regenerar. Em nome do ideal da perfeição, milhões de mulheres sofrem.
Observo o cenário político, hoje oprimido por uma pandemia cruel e um governo insano. Milhões de pessoas sabem disso. No entanto, não conseguimos reagir. “Não posso estar ao lado de fulano”, argumentam. “Não posso dividir ideias que não são minhas”, dizem também. “Não posso trair meu passado”. E, para não falsear seus ideais, ficam paradas. Imóveis, sofrem – de sua própria paralisia, de seus próprios chicotes.
Todas essas lembranças me vêm durante a leitura de Maldita perfeição, livro de ensaios do filósofo catalão Rafael Argullol, que leio na edição espanhola da Acantilado. A expressão, maldita perfeição, resume o drama dos perfeccionistas. Por isso – sem nenhuma culpa – eu a surrupio como título desse pequeno texto. Abominável, cruel, odiosa, danosa são outros adjetivos que se referem à ideia da perfeição.
No pequeno livro de Argullol, um capítulo se destaca. Chama-se "A paixão do jogador", e trata de Dostoiévski e, em particular, da novela O jogador, que ele publicou em 1866, aos 45 anos. Tinha acabado de lançar Crime e castigo. Cheio de dívidas, precisou aceitar a proposta de um editor para, em troca de um dinheiro miserável, escrever em 20 dias uma nova narrativa. Grande parte das dívidas vieram do jogo. Ao falar da obsessão do jovem Aleksei pelas roletas, Dostoiévski arranca uma história de dentro de si.
Apesar do grande prestígio que ainda hoje cerca seu nome, Fiodor Dostoiévski sempre foi associado, também, à decadência, à conturbação interior, à imperfeição. Na Rússia estalinista, muitos o consideravam um “degenerado”. Mas também Vladimir Nabokov, o autor de Lolita, um ferrenho anticomunista, achava seu “cristianismo neurótico” e sua “ética do sofrimento” insuportáveis, Argullol recorda. Nabokov falava da “estrutura patológica” dos relatos de Dostoiévski. Ele o odiava.
Tanto os socialistas, como os conservadores, sempre o olharam com suspeita. No romance O idiota, ele resume seu pensamento: “O mundo se salvará pela beleza”. É difícil imaginar que, para quem pensa assim, a salvação possa vir de uma doutrina – seja ela qual for. As narrativas de Dostoiévski são caóticas, instáveis e cheias de incongruências. Muitos leitores as consideram “deficientes”.
Quando um jovem escritor pediu um conselho a Dostoiévski, recorda Argullol, ele deu uma resposta que, ainda hoje, nos atinge: “Tome o que a vida mesma lhe oferece. A vida é infinitamente mais rica que nossas invenções”. Argumenta Rafael Argullol que a obra de Dostoiévski não tem um centro de gravidade. Não se pode defini-la, ou enquadrá-la, ou mesmo sintetizá-la, já que sua estrutura inquieta e imperfeita impede qualquer síntese.
Dostoiévski não possui “o poder ordenador de um Tolstói”. Nem a sutileza de Tchékov, ou a elegância de Púshkin. A imperfeição é sua marca. Dela e da vida, que é defeituosa e falha, arrancou seus escritos. Diz Argullol que seus romances são “monstruosamente imperfeitos”. Embora o glorifiquem como a um totem, até hoje os russos não sabem bem o que fazer com ele.
A vida de hoje é tão desordenada e inquieta quanto foi na Rússia do século XIX. Sempre será assim, ou vida não seria. Ocorre-me aqui uma sentença do filósofo francês Edgar Morin: “Às vezes temos a sensação do pouco de realidade de nossa realidade”. Não damos conta de tudo, não controlamos tudo, e não sabemos de quase nada. Temos que deixar um espaço aberto – bem amplo – para a dúvida. Para a cegueira.
Era esse espaço que meu confessor não podia aceitar. Ele queria controlar meus sentimentos, meus pensamentos, meus instintos. A descoberta da palavra “escrúpulo” me levou, porém, a preferir a vida. O desejo de perfeição paralisa. Ele fez de mim um menino tolo e cheio de medo. Eu devia ter anotado a frase de Edgar Morin na capa de meu caderno azul, mas agora é tarde, sofri à toa. Na época eu nem sabia da existência de Morin. Um autor que certamente não entrava na biblioteca dos jesuítas.