A primeira música gravada por Castilho Hernandez, o protagonista de Flashes (Editora Iluminuras), novo romance de Sidney Rocha, fala de uma alma errante e solitária, que cintila na noite. São esses espíritos sem rumo, que espocam aqui e ali para logo depois desaparecer, dissolvendo-se contra as vidraças do real, que definem o rosto pálido de nosso mundo. Flashes é o terceiro volume de uma trilogia na qual Hernandez, o cantor, é o grande personagem.
“Toda arte tem uma técnica, mas nem toda técnica tem arte”. Para além das habilidades e dos truques, Castilho tem alma, e isso não se aprende, ou se dissimula. Na trilogia Cromane — iniciada em 2015 com Fernanflor e que prosseguiu em 2018 com A estética da indiferença — Sidney Rocha maneja uma técnica refinada, palavras hábeis de anatomista, toque fino e certeiro. Mas é na esfera da arte pura — posso pensar até na esfera do espiritual, seja isso o que for —, que sua escrita se define.
O desamparo já aparece no primeiro LP gravado por Castilho, Estou perdido. Da penúria, da ruína, da dor insistente Castilho arranca sua voz. Ao ouvi-lo cantar, Manuel León, o grande agente de cantores, perde toda a compostura e simplesmente chora. Não é pouco. “Manuel León não apitava. Era o próprio apito no mercado de discos”.
Alçado entre os grandes, entre os maiores, Castilho precisa sustentar o papel que a história lhe destina — feito de explosões, de luzes breves, de flashes rápidos e veementes. “Há três vozes, neste país: Francisco Alves e, modéstia à parte, eu, no Rio, e agora Castilho Hernandez, em Cromane”. As palavras, soletradas por Nemo Compagno, o grande cantor, trancam o protagonista em uma trilogia da qual já não pode mais escapar. Nemo, o cantor da televisão, é o grande arquiteto de Castilho. Uma obra tortuosa, invasiva, deformante, mas que o alçou, enfim, às luzes.
“Por onde passava, ou metia o rosto desejado, na televisão ou na lata de leite em pó, ou sabão, no doce de goiaba em lata, todos amavam Nemo. As misses o desejavam. Sua personalidade ajudava nos negócios. Com ela podia vender o mundo de volta a Diabo”. Sob a tutela de Nemo Compagno, arrancado do anonimato como alguém da beira de um penhasco, Castilho Hernandez enfim chega a si.
Inácio — nome de batismo de Castilho — recorda que precisou se erguer de vários massacres para, um dia, ser. Enfrentou, primeiro, uma luta corporal com o pai. “Imagine um filho no ponto mais extremo do polo Sul. E um pai no ponto mais escuro e distante do polo Norte. Éramos esses. Inquietas sombras”. Passo a passo, encorpou. A família foi expulsa de Cromane sob a acusação de assassinato de uma promotora. Criavam abelhas — mas quem poderia adivinhar que a advogada era alérgica? A mãe passou a se vestir numa mortalha preta, sem ser viúva, nem órfã.
A mãe lia o voo das abelhas. “Ela entendia a alma das abelhas, a minha e dos meus irmãos, e reprovava a alma de cavalo de meu pai”. A relação do casal era próxima, mas rude. “Me lembro de ela de joelhos cortando as unhas dos pés do marido, que eram cascos”. A família vivia sob a proteção da imagem colorida da Sagrada Família, pendurada na sala, “o vidro grosso, côncavo, a moldura empoeirada e ainda assim radicante”.
Nos destroços do Disneylândia Drinks, ele ouve do vendedor e cicerone Tomás que a felicidade é, antes de tudo, a indiferença. Só os indiferentes se protegem dos clarões do mundo. Só os mornos não se deixam queimar pelo contágio dos flashes. Só os apáticos, desapaixonados, os inapetentes sobrevivem em um mundo de voracidade e gula. Em Cromane, regida pela lei da violência e do esbanjamento, a indiferença se torna salvação.
É assim, da mornidão, que se disfarça em sabedoria, que Inácio reúne seus cacos para, enfim, se construir. É preciso tirar partido do inferno. Que a apatia se derrame por todos os lados — é preciso aprender a beber das águas turvas. Um dos lemas de Cromane é: “Viver, ou morrer tentando”. Você pode perder tempo bebendo e fofocando em lugares sórdidos como o Disneylândia Drinks, ficar ali entre vultos, sem desconfiar de nada. Mesmo assim, não pode perder de vista o que quer. Mesmo no marasmo, insistir, prosseguir.
Em um dos hinos apócrifos de Cromane, se canta: “Afundamos teus bosques na lama/ para levantar teus castelos”. Versos à frente, uma assombrosa definição da cidade: “Cromane, esse véu,/ E mesmo assim nada apodreceu”. É na lama, entre bactérias e fungos, é nas frestas escuras e úmidas, que Cromane se ergue. Mesmo método usado por Castilho para, também entre escombros, chegar a ser um grande cantor.
Em Cromane — como nós também observamos hoje — tudo é adverso. Tudo é difícil. “Em Cromane, amam adoecer, fungar, gripar, tossir. Idolatram as pneumonias. Os cidadãos clamam por excessos. Orgulham-se da noite lenta”. E, em meio a isso tudo, há ainda um papel inevitável a cumprir: “Todos fingem ser o que são”.
No fim, fingindo ser o que somos, nada mais somos. Tornamo-nos atores. Canastrões. Imitadores que desempenham papéis deploráveis, sustentando enredos fúteis, repetindo e reproduzindo a boçalidade, a estupidez e a violência. “Cromane de tantos jardins, fontes, espelhos, quadros, pinturas, onde tudo é tão confuso, e não sei se vivo ou sonho”. É o que tantas vezes fazemos, nós também: simplesmente vamos em frente. É triste, é podre, é horrível, mas este é o caminho que se abre. Infelizmente, tantas vezes, é o único caminho que resta.
Desse horror, desse escândalo, ainda assim, como Castilho Hernandez, temos que tirar alguma arte. Não será grande coisa, não vamos nos iludir. Será no máximo uma cópia de nossa própria impotência. Mas é preciso insistir. Não podemos é imitar os animais mornos, os indecisos, que, incapazes de escolher entre a porta da direita e a porta da esquerda, entram na arca pela porta do meio. Conservar a firmeza. “Nada mais no mundo me interessa do que estar aqui: solidão, chuva ou tempestade”.
Os flashes são rápidos. Eles cegam. São imagens que não passam de raios, de clarões. Um espocar, um estouro, um arrebatamento — e logo tudo se acaba. O flash, contudo, deixa uma borra. Um resto de vida. Precisamos manter a dignidade para dele arrancar um motivo para ser. Para dele fazer a própria vida.