Castello Filipe Aca julho2020

 

A pandemia de covid-19 produziu um sentimento devastador: será que ainda existe no planeta um local seguro em que possamos, enfim, nos refugiar? Dominado por essa experiência violenta de desamparo, um amigo querido, Afonso Henrique, cheio de angústia, me diz: “Acho que vou me mudar para Marte”. Naquela noite, para fugir do desconforto causado não só pelos medos da pandemia, mas pelos horrores da política brasileira, eu relia — em busca de um refúgio não em outro planeta, mas em outro século — a Viagem ao centro da Terra, romance que Júlio Verne publicou em 1864.

Lia Verne, mas, com a mente aflita, mantinha a meu lado um exemplar da Tempestades de aço, o romance que o alemão Ernst Jünger publicou em 1920, ambientado na Primeira Guerra Mundial. A busca de um refúgio me deixava indeciso e inquieto. Como o professor Lidenbrock, protagonista do livro de Verne, também eu estava à procura de um centro, só que não fora de mim, em Marte, ou na profundidade de algum vulcão, mas em meu próprio interior. Então, mesmo sem chegar a ler seu romance, e enquanto descia ao centro do vulcão Sneffels ao lado do professor e de seu sobrinho Áxel, a figura de Jünger não me saía da mente.

Homem de ideias conservadoras, e apesar de ter se tornado um herói alemão durante a Primeira Guerra, Ernst Jünger não cedeu às tentações do nazismo. Suas críticas mais duras ao regime de Adolf Hitler aparecem em Nos penhascos de mármore, livro de 1939. Não foi um período fácil para Jünger. Para fugir da perseguição política, e em busca do mesmo refúgio que agora procuro, mudou-se, durante alguns anos, para as montanhas. Refugiou-se na sombra das florestas. Mais tarde, viajou muito — e chegou a visitar o Brasil.

Em uma longa entrevista ao jornal francês Le Monde, que releio agora em Literaturas, livro publicado pela Ática em 1990, Jünger nos diz: “Percorro o mundo inteiro como um eterno fugitivo; procuro lugares onde se conservou um pouco do mundo antigo. Esta busca torna-se cada vez mais desesperada: em todos os cantos onde chego, a grande maré da técnica, da civilização de massa, já engoliu as paisagens de que me lembrava”. Fugia da modernidade ocidental, com sua voracidade obscena, mas o regime de Stalin também o repugnava. O que me interessa aqui não é discutir seus motivos, tampouco seus confusos ideais políticos, mas chegar a uma constatação: Ernst Jünger sentia — como nós hoje também sentimos — que já não tinha para onde fugir. O refúgio que sempre buscou era inatingível, para não dizer inexistente.

Houve um tempo em que alguns tentaram transformar Jünger em uma espécie de guru alternativo – papel que ele sempre repudiou. Não deu certo, não é isso. Nunca pretendeu tornar-se um guia, ou um mestre. Na mesma entrevista ao Le Monde, ele diz: “Não mantenho nenhuma relação com os movimentos alternativos alemães. Sou o contrário de um pedagogo e recuso-me a desempenhar o papel de guru. Um terço da minha correspondência consiste em declinar convites e sobretudo em recusar posicionamentos políticos”. Não se via cercado por bandos de seguidores, ou por discípulos abnegados. Tudo o que buscou — como nós também hoje buscamos — era um lugar seguro em que pudesse se proteger. Só na floresta conseguia encontrar essa paz.

Afora as florestas — que estão, hoje também, sob fortes ameaças e ataques —, o refúgio já não existe. Busca-se, mas nele não se chega. O mesmo posso pensar a respeito do professor Lidenbrock, de Verne, que, como todos sabem, jamais consegue chegar ao centro da Terra. Em sua linda aventura, em uma cena fantástica, termina cuspido pelo vulcão Etna. Explosão que o lança de volta a seu ponto de partida — ou seja, ao lugar de onde desejava fugir, a superfície do planeta. Também Lidenbrock experimenta, ali, o sentimento de um beco sem saída. Ainda assim, vivenciou um tipo de vitória — a vitória dos que, apesar de tudo, inclusive dos reveses, continuam a lutar.

Sufocados pela pandemia, que não sabemos por quanto tempo irá se arrastar, é bom – como fez Jünger – aprender alguma coisa com a literatura. Parece que hoje quase ninguém acredita mais no poder da literatura. Há pouco tempo, os jornais noticiavam que os bancos brasileiros passaram a negar crédito às livrarias, com o argumento de que o setor “acabou”. É bom voltar a ouvir Jünger: “A literatura e a vida têm em comum a fragilidade. Um belo livro é como uma fôrma natural, uma concha, um favo de mel, um novo sentido dentro do universo”. Alerta ele que, antes só havia matéria informe e que, depois, a bela fôrma será, por sua vez, destruída. “A obra literária e a criação são igualmente efêmeras. Uma onda… O momento musical é o melhor paradigma para a obra. Antes, nada. Depois, novamente o silêncio”.

Medita Jünger ainda que, apesar da fragilidade, a obra de arte também pode ser o último refúgio que buscamos. O centro que, tantas vezes, nos parece perdido. Recorda quando, em sua época de soldado durante a Primeira Guerra Mundial, abrigado nas trincheiras, fugia do horror da guerra agarrado à leitura. “Abrigava-me num buraco de obus e abria meu livro. Pulava para o buraco seguinte e reabria o livro”. Terminou ferido no campo de batalha, mas, levado para um hospital, mesmo entre moribundos, continuou a ler. “Hoje quase não me lembro daquelas fuzilarias, mas recordo-me perfeitamente de minhas leituras”. Naquelas páginas tão frágeis, sujas de fagulhas e de sangue, estava o refúgio que tanto perseguia.

Agora começo a entender que, também no meu pequeno caso, o refúgio que busco só pode estar na leitura. O mesmo amigo, Afonso Henrique, que me disse que deseja se mudar para Marte, dias depois, me contou que encontrara enfim um esconderijo na releitura de Em busca do tempo perdido, de Proust. Nesta longa quarentena, de minha parte, tenho encontrado abrigo nas páginas de As mil e uma noites, que são mesmo intermináveis. Fujo para o mundo árabe do século XI, busco um esconderijo distante, tento me aquietar e me proteger. Mas, sob o bombardeio contínuo das notícias, açoitado pelo horror do real, nem assim consigo sossegar.