Castello Filipe Aca ABRIL2020

 

A alguns livros, por motivos secretos, sempre volto. Um deles é a coletânea dos Sonhos, de Franz Kafka, que releio na tradução de Ricardo F. Henrique para a Iluminuras. A edição é de 2003, ano em que, muito assombrado, eu o li e anotei. Em 2005, o reli. Como sei disso? Dentro do livro, até hoje, encontro um cartão-postal que Lygia Fagundes Telles me enviou, de São Paulo, em junho de 2005, e que usei como marcador. Um cartão que ela comprou em Persépolis, a capital cerimonial do Império Persa, fundada por Dario I. Lygia visitou a cidade no ano de 1976.

Em um breve comentário sobre seus sentimentos durante a viagem, que misturavam a perplexidade e o esgotamento, Lygia rememora: “Pensei que estivesse deprimida”. Procurou um médico, que diagnosticou: “A senhora está exausta”. A beleza também exaure. Anota Lygia, em seguida: “Um dia, hei de achar o cartão do rei Ciro, fundador de Pasárgada, a amada Pasárgada do nosso Manuel Bandeira”. Nunca o achou, ou nunca me mandou. Hoje, levando uma vida reclusa, já é tarde demais. 

Agora, diante do livro aberto, eu me pergunto: por que diabos guardei o cartão que Lygia trouxe da Pérsia dentro do livro de sonhos de Kafka? Dirão que a pergunta é tola, mas não estou bem certo. Também os sonhos de Kafka, selecionados por Luis Gusmán, provocam assombro e exaustão. Sonhos guardam o poder de rasgar o manto sereno com que, para sobreviver, encobrimos a realidade. Eles reviram seus subterrâneos. Com isso, desmascaram nossas mais enraizadas ilusões. 

Através de Lygia, retorno aos sonhos de Franz Kafka. Eles são, quase sempre, pesadelos. Devassam a triste realidade do escritor, um homem que, apesar da genialidade, ou por causa dela, viveu em luta contra o mundo. Há nesses relatos, ditados desde zonas profundas da mente, alguma coisa que se parece muito com nossos miseráveis dias. Alguma coisa que poderia estar, ou que está acontecendo “exatamente agora”. Parece difícil negar que vivemos, hoje, uma espécie de pesadelo coletivo. A realidade nos assombra e esgota. Todos reclamamos de um cansaço que beira a tristeza e que, como Lygia descreve, se confunde com a depressão. Nunca tomamos tantos antidepressivos. 

Reencontro um sonho que Franz teve com seu pai, o comerciante Hermann Kafka, em 1912. Os dois viajam de bonde por Berlim. A cidade está vazia e  bloqueada por cancelas. Obstáculos, impedimentos, porteiras – caminhos cerrados, sem perspectiva. Ao descer do bonde, enfim, pai e filho conseguem cruzar um portão, mas ele leva a uma parede muito íngreme. Talvez um muro. Sem se importar com as dificuldades, Hermann começa a escalar a parede. Descreve Kafka: “Foi escalando quase dançando, com tanta leveza que balançava as pernas no ar”. Em vez de exausto – como Lygia em Persépolis, e nós mesmos, nesse Brasil atordoante –, Hermann parece até feliz diante de seu obstáculo.

Ao contrário do pai, Franz escala o muro com grande esforço. “Como se a parede se tornasse ainda mais íngreme sob meu corpo”, descreve. Apesar disso, segue o pai. Avança como pode, irritado com sua posição inferior, mas continua. Ao cansaço, se mistura o nojo: “Também era muito desagradável o fato de a 
parede estar coberta de excremento humano que ia grudando em mim”. Aos flocos, o excremento lhe gruda sobretudo no peito. Agita as mãos, tenta se limpar enquanto sobe, mas nada consegue.

Quando Franz consegue enfim chegar ao topo do muro, imundo e exaurido, reencontra Hermann, que, muito feliz, o abraça. O pai se veste com uma esquisita farda imperial, “fora de moda, estofada por dentro como um sofá”. Naquele momento, Hermann está saindo de um edifício, onde – como Lygia muitos anos
depois – visitara um médico. “Esse Dr. von Leyden!”, ele exclama. “É um homem extraordinário.” Franz teme que o pai o mande visitar o doutor, mas isso não acontece. Até que, olhando para trás, vê um homem sentado em um aposento de vidro. Logo entende que esse homem é o secretário do Dr. von Leyden, e que o pai só havia estado com ele, e não com o próprio médico. Pergunta-se, espantado, como o Hermann poderia reconhecer os méritos do doutor, se estivera apenas com seu secretário – um mero substituto. Entende não só o que há de falso – fake – na alegria do pai, mas também em todo o cenário. Posso imaginar a decepção de Franz ao entender que o pai se contentara com a presença de um representante; na verdade só uma imi tação, ou uma cópia do verdadeiro Leyden. Uma mentira.

Franz interrompe bruscamente o relato. Tento sintetizar seu sonho. Depois de tanto esforço, depois mesmo de se ver obrigado a conviver com a sujeira e a repulsa, ele reencontra um pai que se contenta com uma falsificação. Talvez por isso a subida lhe pareceu mais leve. Satisfeito com a cópia e com a falsidade, o pai se sentia bem. Enquanto isso, ele, o filho insatisfeito, depois de uma escalada difícil, sentia agora um grande incômodo. O sonho expressa a grande preocupação de Franz Kafka com o tema da verdade. A verdade dói e decepciona, mas dela não podemos desistir. Não podemos nos iludir com miragens, ou  mentiras. 

Penso em nossos dias – em que mais tenho para pensar? Diante da intolerância, do fanatismo, da misoginia, do racismo, da LGBTfobia que se espalham ao nosso redor, dá mesmo vontade de fugir e se contentar com as falsificações que nos vendem. Elas nos parecem limpas e benignas. Aceitando-as, temos a sensação de que somos “homens de bem” e que estamos salvos. A mentira se parece com a salvação.

Volto a Lygia. Em seu cartão, ela me diz que procura um segundo cartão, de Pasárgada – a lendária cidade da Pérsia, hoje um sítio arqueológico do Irã, que Manuel Bandeira imortalizou. Diz que busca o segundo cartão para me enviar também. Como disse, nunca o recebi. O mais provável é que Lygia nunca o tenha encontrado, ou sequer o tenha comprado. Sem o cartão, fico com Vou-me embora pra Pasárgada, o belo poema de Bandeira. “Vou-me embora pra Pasárgada / Aqui eu não sou feliz”, diz o poeta. Diante de nosso violento real, dá também vontade de fugir. Não devemos, porém, nos entregar a essa vontade. O mais sábio é ficar e lutar.