Não sou um leitor frequente de biografias, apesar de ter escrito uma biografia clássica, a de Vinicius de Moraes, e também dois ensaios biográficos, sobre João Cabral de Melo Neto e Rubem Braga. Meu livro Inventário das sombras, reunião de retratos literários, tem um pé na pesquisa biográfica – embora se centre mais na biografia interior de meus personagens. Todos esses fatos desmentem minha afirmação inicial, mas a verdade é que ler biografias nunca me interessou, e me interessa cada vez menos.
O que me interessava neles, então? Creio que, em todos, persegui muito mais os interiores dos personagens do que sua vida concreta, seus atos, seus feitos e consagrações. A rota que escolhi é, ao mesmo tempo, de fuga (da supremacia dos fatos) e de invenção, de decomposição (da realidade convencional), e de salvação. Nos casos dos poetas com que trabalhei: algo que se passa antes da poesia. Ou, dizendo melhor, talvez, apesar da poesia.
Esses pensamentos me chegam agora que tenho diante de mim a Poesias nunca publicadas, de Caio Fernando Abreu, editada enfim pela Record, em 2012. Diante do livro, a primeira pergunta que me vem é: por que poesia nunca publicada? Sempre orgulhoso de suas narrativas e atraído pela visibilidade, por que Caio escondeu, durante toda a vida, sua produção poética? Por que ela só nos chegou, enfim, dezesseis anos após sua morte?
Atravessando os 116 poemas inéditos – que Caio escreveu entre os anos 1960 e 1990 –, uma primeira ideia, bastante simples, me vem: a de que esses versos lhe serviram mais como confissão do que como criação. De que seu desejo não era exatamente o de “fazer poesia”, ou “tornar-se poeta”, mas, em vez de disso, de repisar o caminho que os poetas percorrem até chegar a seus poemas. Em outras palavras: permanecer nos bastidores, no laboratório, nos preparativos da poesia – e a poesia, ela mesma, surge ao final só como um resto, ou uma consequência inevitável que se deve tolerar e aceitar.
De certo modo, todos os poetas fazem o mesmo, todos trabalham assim. Mas a maior parte deles é guiada pela luz do poema pronto, que os atrai como uma estrela bíblica. Não estou dizendo que os versos de Caio sejam relaxados, ou que não tenham interesse. Seus versos são dignos e guardam seu estilo pessoal. Mas, quando os escrevia – me vem agora a impressão – ele pensava mais em sua vida interior do que nos “resultados” que a poesia pudesse produzir no mundo exterior. Vivemos a época nefasta dos objetivos, dos balancetes e dos ganhos, onde só parece haver espaço para os vencedores, enquanto os derrotados, os miseráveis, os infelizes são deixados ao lixo. Aumenta, assim, a importância de enfim reencontrar, agora, essa poesia viva e desperta para o presente, sem nenhuma ilusão de perfeição ou desejo de glória.
Chego aos poemas. Em versos de dezembro de 1980, encontro uma descrição precisa: “Amor não foi, mas invenção/ pois te queria de ouro,/ enquanto eras de barro, águas,/ tintura fria, verniz”. Em um aparente poema de amor, Caio discute, mais do que a paixão, sua relação com as palavras, que são frágeis e insuficientes, quase inúteis, diante da vibração do mundo. Os poetas escrevem em busca do ouro, do impecável, da perfeição. Mas, se agem como Caio, o que sai de si é algo anterior, incompleto, talvez um tanto insano, algo que não está tão próximo da beleza, mas que, por certo, está bem mais próximo da verdade.
Assim Caio arremata seu poema: “A chuva te desfez. Restou a lama./ De mim, um brilho falso, imitação./ Quinquilharias”. Este resto, esta lama, agora expressa em palavras, é só uma pegada do caminho que o poeta atravessou. Também em um poema como As regras do jogo, chamado ainda de Curva do tormento, Caio deixa bem claro os motivos que o levaram à poesia. Diz: “E porque é só o que tenho, volto a escrever”. A poesia, de novo, é o que sobra de uma existência dinâmica, complexa, mas que esbarrava em um impasse. Só porque nada funciona, só porque a insatisfação aumenta, ele se dedica à escrita que, desse modo, não chega a ser uma escolha – é mais uma condenação.
Mais uma vez, o leitor se depara com um Caio desinteressado pelas pompas da poesia, alheio à imagem galante de poeta, indiferente aos possíveis ganhos financeiros ou morais que, com os versos, ele pudesse obter. O poeta não tem objetivos, não deseja nada; imitando os náufragos, agarra-se ao que pode. Escreve “para restaurar o sentido, quem sabe,/ embora pouco ou nenhum atravesse a noite de março”. Não escreve para “expressar-se”, ou para “encontrar-se” – não alimenta nenhuma ilusão terapêutica a respeito da escrita. Não quer se curar de nada, tampouco imagina que as palavras possam lhe oferecer qualquer tipo de solução. Se quase nada lhe resta na noite, ele escreve para criar algo a que possa se agarrar. Mais uma vez, a poesia não como projeto estético, ou como introspecção psicológica, mas como salvação.
A poesia – iludem-se os poetas de gabinete – não promove luminosidade alguma, não desvenda nada, ao contrário, só complica o real. Assim, já em um dos poemas finais, em que se diz “à beira de um não ser”, Caio, já percorrida quase toda a sua trajetória poética, poderosamente desiludido (porque a desilusão exige coragem), escreve: “Há um escuro cavalgando meus pisares,/ uma estranha face, de negras asas e cintilante espada – anjo do nada”. Um escritor pragmático talvez pudesse se perguntar: para que serviu tanto esforço? Por que escrever se não se chega a nada, ou, ao contrário, se só ao nada se chega?
O poema, como as cartas, termina com um PS. ao amigo a quem os versos se dirigem. Nessa nota final, Caio, de certo modo, abandona a si mesmo e às próprias palavras, e abre espaço, ainda que estreito, para a vida. Diz: “Já se faz noite. Estou sozinho./ Tenho uma dor que mata, a mão vazia:/ mas ainda que anoiteça, Fernando,/ é certo que amanhece”. Nele expressa seu desinteresse pelos resultados e pelos efeitos externos de sua poesia. Ao contrário, ele a reconhece como uma poesia que basta a si mesma – tanto que nunca se interessou em publicá-la.