CASTELLO CABRAL

 

“Escrever é estar no extremo de si mesmo”, diz João Cabral em Exceção: Bernanos, poema do ano de 1952. Logo à frente, esclarece: a poesia é tarefa de “(...) quem está / assim se exercendo nessa /nudez, a mais nua que há”. Falava, sobretudo, de si e de seu imenso pudor pela maneira radical, acintosa, brutal com que manejava as palavras. Acrescenta: “Mas no pudor do escritor / o mais curioso está / em que o pudor de fazer / é impudor de publicar”. Esses sentimentos tensos a respeito da poesia desmentem, e até mesmo destroem, sua imagem oficial de poeta da Razão. Alguns insistem, ainda hoje, em falar no “poeta de pedra” – como o amigo Vinicius de Moraes, certa vez, o definiu. “Poesia de cabra”, Vinicius o provocou também. Outros preferem falar em uma “poesia de engenheiro”, precisa, feita sobre prancheta rigorosa, a golpes de martelo. Todo esse apuro, toda essa rigidez, porém, não tiram da poesia de Cabral um sentimento de fundo que a relativiza e até, de certa forma, a aniquila: o de que o poeta escrevia sempre à beira do abismo.

Importante reler João Cabral quando ele completaria 100 anos de idade. Morto em 1999, hoje, mais de 20 anos depois, não pode, ainda assim, ser reduzido a um fantasma. Não é um mito, congelado e inerte, mas uma figura viva, cada vez mais intensa. Prefiro pensar em seu texto de faca, que destrincha e tritura a realidade, em luta para chegar ao osso das coisas. Em uma entrevista, quando lhe ofereci essa imagem, de resto repisada, em tom provocador ele me respondeu: “Leia então o Beco da facada. Falava de um de seus poemas, guardado em Crime na Calle Relator, livro de 1987. O poema, enxuto e impiedoso, traz uma lição: a de que não devemos acreditar na firmeza das palavras, tampouco na precisão de seu corte. Beco da Facada – “portanto, nele, andou uma faca”, diz o poema. E prossegue: “O nome não era anedota: / alguma faca ali voou, solta”. Discute-se a origem do nome, que “dava lugar a versões vagas”. Mas é de forma brutal que o poema desmonta tais fantasias: “Certa noite, naquele beco, / de facas se voando, no medo, // apesar do texto de faca, / Um assassinou Outro a bala”.

Poeta materialista, Cabral ficava furioso quando lhe negavam essa condição. Mesmo se isso viesse dos grandes amigos. Em Resposta a Vinicius de Moraes, de Museu de Tudo, ele reage, com ênfase, aos que cultuavam sua suposta perfeição: “Não sou um diamante nato / nem consegui cristalizá-lo: / se ele te surge no que faço / será um diamante opaco / de quem por incapaz do vago / quer de toda forma evita-lo”. Não só reage, desmente, colocando em cena um segundo elemento, ainda mais forte que a imagem do diamante: a do medo. No caso, medo do vago, do impreciso, do nebuloso, e foi por isso, por certo, que ele se agarrou com tanta força a seu martelo de engenheiro. No fecho do poema, impiedoso consigo mesmo, aceita, no máximo, a comparação com um diamante industrial, barato, “que incapaz de ser cristal raro / vale pelo que tem de cacto”.

Não consigo deixar de pensar nesse “incapaz” com que o poeta, aborrecido, um dia se definiu. Esta suposta incapacidade sinaliza, talvez, o espaço invisível que existe nos intervalos da matéria – os físicos, hoje, talvez falassem em “matéria escura”. Cabral bem que tentou controlar a matéria a golpes secos, mas ela sempre lhe fugia. Lutou até o fim contra a imagem nefasta do poeta “que só escrevia na latrina, / quando sua obra lhe saía / por debaixo como por cima”, como diz em Retrato do poeta, outro poema do Museu de Tudo. Criticava aquele que, “(...) apenas joga / com o fácil, como vigarista”. João Cabral buscou sempre o mais difícil, como se vacilasse em uma corda sobre o abismo. Um tremor contínuo o sacolejava, e este é o sangue de sua poesia.

Desde menino – quando chegou a ser internado por um tio psiquiatra para tratar dos nervos –, a realidade o devastou. E a realidade é sempre imperfeita. Sua formação materialista – ao contrário do que pensam os materialistas de cartilha, descrentes diante da fluidez dos sentimentos – nele despertou uma sensibilidade extrema. Em particular, para o mundo nordestino de onde veio. Não é só em Morte e vida severina, seu poema mais célebre, que esse laço estreito com a vida se aperta. Leia-se um poema como meio esquecido, mas belo, como O luto no Sertão, de Agrestes. Sobre a paisagem seca e inerte, se sobrepõem, porém, fortes sentimentos. Escreve o poeta: “Pelo Sertão não se tem como / não se viver sempre enlutado; / lá o luto não é de vestir, / é de nascer com, luto nato”. Hoje – quando tantas vezes o Nordeste é confinado entre o folclore e o preconceito -, a leitura de Agrestes se torna brutalmente atual. Sobre esse luto nordestino, Cabral diz ainda: “Sobe de dentro, tinge a pele / de um fosco fulo: é quase raça; / luto levado toda a vida / e que a vida empoeira e desgasta”. Em um solo pedroso e de vegetação rala, só um poeta sensível consegue ver a morte onde a maioria de nós quase nada vê.

É hora de reler, em outra perspectiva e com outra sensibilidade, a poesia de João Cabral de Melo Neto. No fim da vida, confinado em seu apartamento na Praia do Flamengo, no Rio de Janeiro, ele mesmo, escondido detrás de cortinas sempre fechadas, procurou amortecer a força do mundo. Tentou – inutilmente – emparedar-se, para que os nervos não o perturbassem tanto. Mas, dentro dessa postura de pedra, seu coração latejava forte. Já não conseguia mais ler poesia, de ninguém, “nem mesmo versos melosos”, como me disse um dia. Fugiu da ficção, que também o emocionava. Trancou-se na frieza dos estudos de História e de Geografia, mas também os evitava. Chegou, provavelmente, ao núcleo de si mesmo. Em uma de suas primeiras composições que, avaro, chamou apenas de Poema, ele se pergunta: “Trouxe o sol à poesia / mas como trazê-lo ao dia?”. Fala de suas dificuldades com o real, mas também de seu espanto diante dos próprios versos, em que “nova espécie de sol / eu, sem contar, descobria”. Em pleno século XXI, a poesia de João Cabral lateja em sincronia com a realidade.