Castello Filipe Aca dez19

 

Em outubro passado, uma notícia que deveria estar nas manchetes dos jornais apareceu espremida em miseráveis rodapés. Uma pesquisa oficial mostrou que a distância entre ricos e pobres no Brasil nunca foi tão grande. Segundo o IBGE, os 10% mais ricos detêm 43% das riquezas. Os dados me chegam enquanto leio Poemas, de Vladimir Maiakóvski (1893-1930), traduzido por Boris Schnaiderman e pelos irmãos Augusto e Haroldo de Campos para a editora Perspectiva. A literatura provoca súbitos encaixes no tempo, em que horrores do presente se deixam dissecar pela poesia do passado. Ela nos serve, assim, como uma lupa, que nos ajuda a examinar nosso próprio tempo.

Esta concentração indecente de riqueza cria uma geração de homens empanturrados – não só de comida, mas de arrogância e de bens. Maiakóvski já os conhecia muito bem. Ao contrário da moda nefasta de nossos dias, que sataniza a política, ele a valorizou e a celebrou, entendendo-a não só como engajamento e diálogo, mas como vida. Também na contramão de nossos dias, embriagados pelas figuras virtuais e pelos balancetes, o poeta atribuía grande valor ao real, apesar de toda a dor que isso provoca. Foi, portanto, o oposto dos burgueses glutões que, em seus versos, ele transformou em personagens satíricos. Criticou com virulência, ainda, a escuridão e a frieza da vida urbana que eles construíram.

Escreveu sem se poupar da indignação e da repulsa, sentimentos que, sem qualquer falsa piedade, ele cultivou: “Sabem você, inúteis, diletantes / Que só pensam em encher a pança e o cofre, / Que talvez uma bomba neste instante / Arranca as pernas do tenente Pietrov?” Este nome, Pietrov, pode ser visto como apenas um nome para qualquer um que, em vez de se empanzinar de riquezas, se engaja e luta. Para qualquer um que, em vez de gozar os luxos da borda, mergulha fundo nas águas do real. “Vocês, gozadores de fêmeas e de pratos, / Dar a vida por suas bacanais? / Mil vezes antes no bar às putas / Ficar servindo suco de ananás.” Maiakóvski, que aos 15 anos de idade se engajou na política e antes dos 20, por isso mesmo, passou um ano preso, sabia de que lado estava. Sua escrita tinha lado e tinha coração.

Sua visão da política incluía a coragem e o sangue. Já em 1923, quando fundou a revista Frente de esquerda, entrou em choque com os burocratas socialistas. Em seu Hino ao sabe-tudo, assim descreveu esses “senhores de gabinete”: “Não têm nenhuma qualidade humana. / É uma impotência bípede e senil, / com a cabeça totalmente insana, / em sua tese ‘sobre as verrugas do Brasil’”. Esses falastrões, ele entendia, não passam de glutões, que acumulam saber como se ele fosse uma posta de arenque.

Com a mesma ênfase, Maiakóvski se levantou contra a imprensa e, em especial, contra os críticos que, de suas páginas frias, avaliam o mundo. Sobre eles, escreveu: “Parece que apodrece ante a nossa vista / Um enorme lacaio, balofo e bajulante”. Com sarcasmo e ironia, sugere a construção de um asilo que os abrigue: “Vocês pensam que é mole viver a enxaguar / A nossa roupa branca nos artigos?” Diante das imensas panças, fazia suas as palavras de Kazimir Malevich, que com ele escreveu, em 1925, o Manifesto do Suprematismo: “Eu sentia apenas noite dentro de mim”.

Contra a noite, a poesia. Contra a fome insaciável dos que desejam apenas acumular riquezas sem considerar o mundo à sua volta, no Hino à comilança, o poeta escreveu: “Glória a vocês, que comem por milhões! / E aos milhares que vão matar a fome! / Fabricantes de bifes, pães, salmões, / E os mil pratos de tudo o que se come”. Em luta contínua contra o estômago insaciável das elites russas, Maiakóvski usa a poesia para desafiar a indiferença. Não se esquiva, porém, de deles zombar. Sem piedade, caçoa: “Sem olhos, sem ouvidos, vai, descansa / com um naco de bolo em tua mão; / qualquer dia teus filhos ainda vão / jogar bola em tua pança”.

Em seus versos de guerra, sintetizou: “Nosso arsenal é o canto”. A política o levou, também, para a esfera da estética. Sempre que pôde, combateu os artistas de salão. “A vós todos/ eu (...)/ gênio ou não gênio, tenho / a dizer: basta!”. No mesmo poema, e sem controlar a ira, diz: “A vós / descabelando cabelos bem penteados/ barganhando escarpins por solados”. Nessa luta, Maiakóvski guardava severas intenções estéticas, que o colocavam contra os hábitos da elegância e do bom gosto. Não se esquivou de usar a poesia para debater com os teóricos de sua época. Assim resume seu impasse, que não é apenas estético, mas político: “Perdidos em disputas monótonas, / buscamos o sentido secreto / quando um clamor sacode os objetos: / ‘Dai-nos novas formas’”. Não foi por outro motivo que ele se engajou nos movimentos de renovação da arte, aliança que se expressa, sobretudo, em sua amizade com Malevich.

Para os que ainda duvidam que política e estética caminham juntas, escreveu: “Eu / à poesia / só permito uma forma: / concisão / precisão das fórmulas / matemáticas”. Também os artistas de salão se empanturravam com divagações inúteis e arpejos exibicionistas. Também eles eram obesos e tinham suas barrigas cheias de vagas teorias. Engajado com o real, ao contrário, Maiakóvski defende o rigor extremo, versos “afiados e precisos como palitar dentes”. Uma poesia cirúrgica, que atue como uma faca a descascar os disfarces da realidade. Foi um poeta dos fatos e das coisas. E, quando pensava nos fatos, pensava nas cidades russas que, àquela altura – sopravam os ventos do Futurismo – já lhe pareciam inchadas e inabitáveis.

Em A cidade infernal, escreveu: “As janelas cindiram a cidade infernal/ em íntimos infernos que sugaram a luz./ Os carros saltam, rubros belzebus,/ e explodem nos ouvidos seu sinal”. Contra a estética da velocidade e do consumo, ela também glutona, Maiakóvski propõe – à frente de seu tempo – um mundo em que a natureza reine. Abatido pelas ruas que o asfixiavam, escreveu: “A noite desmaiou / lúbrica e nua, / e por detrás do sol pelas estradas / manquitolou, inútil e indolente, a lua”. A inutilidade da lua diante das luzes urbanas atesta o fracasso da civilização, cuja agonia Maiakóvski, com os olhos no futuro, antecipa.