Vemos, hoje, uma mistura repugnante, mas crescente, entre o ódio e a fé. Elementos incompatíveis e opostos, sua inaceitável aproximação atinge, em cheio, nossas esperanças. É na escuridão do fanatismo que os manipuladores de várias estirpes conectam hoje o sagrado e o insulto. É verdade: eles não chegam a cultivar a violência dos homens-bombas, pois estes acreditam que, explodindo junto com seus semelhantes, irão direto para o céu. Agora, porém, essa visão anguinária adquire nova face, menos escandalosa e menos chocante, mas igualmente assustadora.
Na mente doente de muitos homens de fé, o sagrado e o ódio tomam, cada vez mais, a aparência perversa do mesmo. Mas não podemos aceitar isso, não se aceita o inaceitável. A fé e o ódio, antes inconciliáveis, agora se deitam, tantas vezes, no mesmo leito. Felizmente, não é sempre; felizmente, a fé ainda sobrevive como esperança e a ideia do sagrado continua a elevar e a consolar os homens. Mas essa combinação abjeta, quando acontece, nos golpeia. Quando alguém se ajoelha, já não sabemos mais se é para rezar, ou para odiar. Isso é enlouquecedor.
A literatura tem caminhos estranhos, mas potentes, para dar conta da realidade. Ela não fala diretamente das coisas. Só fala – nos disse Clarice Lispector – nas entrelinhas. Ela não as “traduz”, ou “explica”, a literatura não facilita nada. Aliás, é o contrário: quando mostra, mostra para complicar. A literatura – que é arte, sim, embora muitos hoje acreditem que não – torna o mundo mais complexo. Enriquece nossas vidas. As imagens que ela oferece não são nítidas, mas ásperas, e até indignas. São inaceitáveis, contudo é para isso que a ficção existe: para mostrar o que ninguém quer ver, ou suporta ver.
A mistura repugnante entre a fé e o ódio reaparece, agora, em Colégio de freiras (Iluminuras), novo livro de Raimundo Carrero. É preciso lembrar: além de um grande escritor, Carrero é um sábio. Passa os dias escondido em sua poltrona no Bairro do Rosarinho, zona norte do Recife. Reza – reza muito –, lê muito também, e escreve sem parar. Sim, também dá aulas, recebe homenagens e fala sobre seu trabalho. Mas o principal se passa ali, em silêncio quase sagrado, naquela poltrona em que Colégio de freiras nasceu.
Na aparência, é uma novela simples. Vânia perde a virgindade e o pai, Dr. Vesúvio, esfogueado, a leva para um prostíbulo. Ele carrega, no peito, a maldade. A fúria boçal que, tantas vezes, ainda definem o masculino. “Cheirava os dedos. Tipo animal. Legítima besta quadrada. Era de uma tal estupidez, que ninguém precisava lhe falar para saber de quem se tratava, bastava vê-lo a distância.” Não estamos, ainda hoje, cercados de homens assim? Não é nele – neste homem a quem também chamam de Dr. Vulcão – que a crueldade se condensa?
Ao nos defrontar com o semblante da maldade, Carrero não facilita nosso caminho. Mal começamos a ler, e as coisas já começam a se misturar. A dona da casa, Dona Quermesse, é chamada de “Madre Superiora”. Não está ali para administrar um trabalho – digno, aliás, como qualquer outro –, mas para arrancar a alma de suas moças. O “Colégio de Freiras”, como chama o lugar, fica na Rua da Concórdia, no Bairro de São José, centro do Recife. Mas este centro transborda. Vânia, por exemplo se dissolve em outras figuras femininas que lá habitam, como a de Milena. A casa é decadente, apesar da aparência elevada. Ali tudo se mistura.
Vânia e Milena são colegas desde a juventude. A proximidade entre elas não excluía, mas era alimentada pela perversidade. “É claro que tive muitas chances de matá-la, mas evitei. Vânia não podia ser vítima de nenhum assassinato. Merecia um ódio requintado”, narra Milena. O disfarce do requinte também está na casa em que agora vivem, que é um bordel, mas também é um salão de danças. Entre as duas, se infiltra a figura limítrofe de Abdon – o nome vem de “Adão” –, que, dizem elas, inventou a luz, mas carrega também o pior do masculino.
Neste terreno minado, tudo é vil e traiçoeiro. Não há lisura, clareza, franqueza – tudo o que o leitor encontra é um feixe incompreensível de significados falsos. Não vivemos hoje retidos na mesma rede de enganos? Abdon, na verdade, foi um quebra-galho da família do Dr. Vesúvio, que consertava torneiras e canos furados, mas aos poucos se transformou, dizem as moças, em um Anjo. Quando não pegava no pesado, ensinava Vânia a tomar banho e a limpar o sexo. “Eu cuido de você, lhe banho, a alimento. Você agora tem seu Anjo da Guarda em casa.”
Há ainda Isabel, que era só uma normalista quando foi estuprada por um homem que cheirava a óleo queimado. “Tentava pegar nele e a mão escorria. Uma figura da noite, um ente da noite, entrando nela.” Mais que marginais, as mulheres do romance são, sobretudo, prisioneiras. Descreve Vânia: “Era só a noite e depois o dia, a noite e depois o dia, a noite e depois o dia, o dia e depois a noite, sem fim. (...) Não acabava, nunca acabava”. Retidas em uma eternidade diabólica, elas tentam resistir à rudeza dos machos. Mas a realidade as engole.
Salvam-se pela fantasia – pela ficção. Vânia, por exemplo, se convence de que é uma invenção de Abdon, de que ele lhe deu a forma de mulher. “Era sorte, uma grande sorte minha, que Abdon fosse meu Anjo Vingador.” O sagrado se mistura com o ignóbil. Leitora de revistas de heróis espaciais, ela acredita que faz parte de um grupo de mulheres guerreiras. Revira a miséria em força. Crê ainda que faz contatos com extraterrestres, mas não fala sobre isso “para que não pensassem que eu estava louca”. É em meio ao delírio, e também a um incêndio real, que Vânia atribui à invasão alienígena, que ela começa a tramar sua fuga.
No entrecruzamento do profano com o sagrado, dissecando com fina elegância a alma das mulheres que vivem de seu corpo, Raimundo Carrero chega, aos poucos, aos versos de Sylvia Plath: “Sou uma virgem pura / De acetileno / Cercada de rosas / (…) E de beijos e de querubins”. Impondo a voz da poesia onde dominam a violência e o terror, Carrero rasga uma ferida da qual escorrem, ao mesmo tempo, as piores maldades e as mais belas esperanças. Dela goteja, ainda, o horror de nossos dias.