Castello Luisa Vasconcelos ago19

 

A turvação e a oscilação são elementos cruciais da existência humana, mas não devem nos dominar. Na vida, atravessamos graves momentos de desânimo – como o que hoje nos imobiliza e congela os passos –, mas nem por isso podemos desistir de alguma sabedoria, que nos leve a vibrar e a avançar. A sabedoria, porém, não é uma qualidade fixa, uma ciência imóvel, ou um totem que devamos reverenciar; ela é mais uma vibração, ela é mais um pensamento que se move, ela é astúcia. Sempre que penso na sabedoria, ou na necessidade de alguma sabedoria, penso, ato contínuo, em Onde encontrar a sabedoria?, livro que o crítico nova-iorquino Harold Bloom publicou em 2004 e que foi traduzido no Brasil pela Record.

Meu velho exemplar do livro de Bloom está todo em garranchos: na sabedoria, não interessam a limpeza e a estabilidade, mas a dúvida e a inquietação. A sabedoria pura, imaculada, de nada vale, importa apenas aquela que, na agitação dos dias, revolve o real. “As maiores ideias são os maiores eventos”, diz a epígrafe, tomada de Nietzsche. Uma sabedoria que não revira e escava a realidade é uma sabedoria burra. Apoia-se Bloom em dois grandes mestres: Miguel de Cervantes (e seu cavaleiro Quixote) e William Shakespeare (sobretudo no príncipe Hamlet). É da literatura, e não da filosofia, ou da ciência, ou da religião, que ele sempre parte. A literatura não “dá aulas”, tampouco transmite conhecimentos acabados ou sagrados, mas, ainda assim, ou por isso, guarda um poder especial para desbravar a realidade.

O Quixote, com seus sonhos de justiça e glória, mostra a impossibilidade de saber quem somos. “Será que sabemos exatamente quem somos?”, pergunta-se Bloom. “Quanto maior a urgência com que buscamos o nosso eu autêntico, mais ele se retrai.” Cervantes nos deixa diante, portanto, de uma luta sem fim da qual, nem por isso, devemos desistir. A vida é dura, mas, quanto mais adversa é, mais promove em nós o espírito da resistência. “Cervantes se vale da necessidade que tem o ser humano de resistir ao sofrimento, motivo pelo qual o Cavaleiro conquista a nossa admiração”. A realidade é inóspita e adversa, contudo é essa infelicidade que afina nosso desejo e, em consequência, nos torna mais fortes. A vida é luta e, quanto mais dolorosa é, mais reforça em nós o desejo de lutar.

O Quixote, assim como o príncipe Hamlet, não é um herói estático – não é uma estátua que devamos reverenciar, ou honrar. Diante de seu desassossego, de suas fraturas, de sua evidente perturbação, isso seria ridículo. Não dá para enquadrá-los, e justamente por isso eles continuam mais vivos do que nunca. Diz Bloom: “Dom Quixote, à semelhança do que há de melhor em Shakespeare, resiste a qualquer abordagem teórica, às melhores e às piores”. E por quê? Simplesmente porque são heróis aferrados às turbulências da vida – são heróis vivos. Ambos criticam e zombam da retórica, isto é, dos discursos solenes, do conhecimento protocolar, do saber petrificado oferecido pelos acadêmicos e teólogos. A sabedoria está muito distante dessas lições engenhosas.

Entende Bloom que o relato de Cervantes é, antes de tudo, “um convincente despertar para a mortalidade”. Quando se encara a morte, se descobre, no mesmo instante, os limites da vida. A sabedoria tem limites, a luta tem limites – mas justamente por isso, porque são relativas e humanas, valem a pena. Por isso, acrescenta Bloom, “Cervantes e Shakespeare oferecem-nos personalidades mais vivas do que nós”. Eles nos provocam ao indicar que a sabedoria não é canônica, pois a própria ciência, se deseja mesmo avançar, deve ultrapassar seus mais consagrados dogmas. A sabedoria é móvel, nunca está no mesmo lugar, nunca diz a mesma coisa, não repete ou reverencia, mas desperta e agita. “Nada explica Shakespeare, e nada pode reduzi-lo a uma explicação”, insiste Bloom, enfatizando a imagem de uma sabedoria inquieta, que não se contenta com seus parcos ganhos.

Mas onde encontrar a sabedoria? Um pouco mais à frente, e como uma possível resposta, Bloom nos leva a lembrar de Sobre a fisionomia, um dos célebres ensaios que Michel de Montaigne escreveu no longínquo século XVI. Que caiam as máscaras dos esnobes e dos pedantes. Voltemos à face rasteira do real. “Assim fala um camponês, assim fala uma mulher. A boca de Sócrates só tem carroceiros, marceneiros, sapateiros e pedreiros”, escreveu Montaigne, propondo um retorno à simplicidade, que é direta e frontal. Prossegue: “As induções e os símiles de Sócrates advêm das ações mais comuns e conhecidas do homem: todos podem compreendê-lo”. Já sabemos que os intelectuais empolados – porque alérgicos ao real – costumam se esconder atrás de paredes grossas.

Admite Montaigne: “Na base de uma forma tão humilde, talvez jamais identificássemos a nobreza e o esplendor das ideias admiráveis de Sócrates, nós que consideramos simplistas e inferiores todas as ideias que não são elevadas pela erudição”. A erudição é algo muito diferente da sabedoria: o que ela enrosca e empola, a sabedoria desmonta e revela. Lamenta-se Montaigne, cinco séculos antes do nosso: “Nosso mundo é formado somente de ostentação; homens inflam-se a si mesmos com apenas vento, e saem quicando, como bolas”. Não é entre os sábios da corte que encontraremos um caminho. Mas onde, então? Voltando a nosso cotidiano mais bruto, Harold Bloom propõe um retorno à leitura silenciosa e obstinada – essa que está em desuso em nosso mundo elétrico. Ainda agarrado a Montaigne, ele diz: “O que importa a Montaigne é a gestão da vida; ele não estuda a morte, deixando tal empresa para filósofos e teólogos”.

Devastado pelos filósofos faladores, nosso mundo precisa, ao contrário, dos leitores silenciosos e solitários. Admite Bloom, contudo, que nessa escolha se guarda um paradoxo. “Lemos, penso eu, para sanar a solidão, embora, na prática, quanto melhor lemos, mais solitários ficamos”. Pois é nessa solidão acompanhada que a sabedoria se esconde e prospera. É ali, muito mais do que nas pregações e nas performances intelectuais, que alguma coisa, simples, pequena, mas vital e corajosa, se pode aprender.