Castello mai19 HanaLuzia

 

Mais conhecido pela trilogia épica O tempo e o vento, publicada entre 1949 e 1952, Érico Veríssimo nos deixou, reclusa no interior de uma vasta obra, uma pequena novela que, de certa forma, desmente tudo o que escreveu. Falo de Noite, narrativa do ano de 1954, escrita entre o segundo e o terceiro volumes de O tempo e o vento, que releio agora em uma antiga edição da Editora Globo, de 1966. A surpresa é dupla: além da dissonância ruidosa com o espírito do próprio Érico e sua paixão enfática pelo realismo, Noite guarda, talvez por isso, uma inesperada sincronia com nossos tempos obscuros. Torna-se, assim, uma novela do século XXI.

Noite é, em tudo, diferente de O tempo e o vento. No lugar da obsessão histórica e do rigor descritivo, das minúcias e do desejo de verdade, arrastamo-nos em uma atmosfera esfumaçada e imprecisa. Em vez de personagens realistas e transparentes, surgem seres difusos e fluidos que, na maior parte do tempo, se assemelham a espectros. No lugar de uma ação firme e clara que se desenrole com nitidez, temos um relato em atoleiro, que se abre em círculos em vez de avançar, e que parece não chegar a lugar algum. É a história de um homem comum – o “Desconhecido”, ou o “Homem de Gris” –, sujeito de espírito fragmentado, perdido na zoeira urbana e espremido na velocidade de seu tempo. Um homem despedaçado, que não sabe mais quem é – exatamente como o homem contemporâneo que, ao se olhar no espelho, em pânico, tantas vezes se desconhece. Um ser desfigurado, desfalecido, que vagueia sobre imagens pastosas, em luta para sobreviver.

Sente-se preso em uma grossa bruma, na mais completa indefinição – do mesmo modo que o homem de hoje, rompido em estilhaços, bombardeado por informações que já não sabe mais para que servem, cada vez mais incapaz de distinguir o verdadeiro do falso. Nosso mundo de escândalos vazios, de verdades fake, de clones e de miragens se define, antes de tudo, pela inconsistência. Também o personagem de Veríssimo avança à deriva, engolido por uma noite densa que nunca termina. Mexe-se às apalpadelas, só consegue enxergar a realidade através de fendas muito estreitas e, por isso, só tem acesso a pedaços que não se conectam e que, soltos, não fazem sentido algum. Para ele, o real já não existe.

Não se apoia no conhecimento, mas no desconhecimento. Quanto mais as notícias lhe chegam, quando mais experiências ele acumula, menos se conhece. O Desconhecido é escoltado por dois companheiros. Um anão corcunda, sujeito caricato, marginal, repulsivo até, mas que, apesar de toda a aversão que nele desperta, nunca o abandona. E um mestre, ou um ator, um sábio perdido em tempos cinzentos, dominados não pela sabedoria, pelo equilíbrio e pela serenidade, mas pelo cinismo, pela malandragem, pela face dupla, em resumo: pela não identidade. Pelo disfarce.

O Desconhecido – nem mesmo o leitor mais atento consegue dizer quem ele é, e talvez até mesmo seu autor, Érico Veríssimo, o desconheça – transita por sítios limítrofes e que o enxotam em vez de acolher: um velório (em que a vida e a morte se fundem), o submundo (onde a coragem e a queda se misturam), um prostíbulo (fronteira entre o amor e o desamor). Vai também a uma quermesse, armada em um parque de diversões – mundo das fantasias mecânicas, das simulações grotescas, das luzes que em vez de iluminar, cegam. Atravessa ainda um pronto-socorro de hospital, outro lugar em que o cuidado e a paciência se misturam com a decadência e o sangue. A verdade já não passa de um pesadelo.

A história do Homem de Gris parece asfixiar o próprio autor, Érico Veríssimo que, por fim, tenta se salvar, e salvar seus leitores, oferecendo-lhes uma explicação “psicológica”, precária, insuficiente. Na edição de 1966, o impulso irrefreável para as “explicações” se inicia, já, na página 107. Sonhos, lembranças dolorosas do menino que ouve os ruídos do ato sexual entre os pais, e que julga não se tratar de uma experiência de amor, mas de um assassinato. Esse sentimento de suspeita e de culpa chega à idade adulta. Mas a redução da noite a esses eventos remotos é insuficiente. A desconfiança se espalha. O mundo externo invade o interno – que não dispõe de recursos para se proteger. Nessa densa bruma, o personagem de Veríssimo se torna um joguete dos fatos, das suposições, das acusações, de devaneios; eventos que, em vez de clarear, escurecem seu caminho. Reprodução de um cenário que, passado meio século, ainda perdura – ou pior, se agrava.

Lido em pleno século XXI, Noite mostra que os escritores não se encaixam nas categorias, nas escolas literárias e nas classificações com que tentamos capturá-los. Para além dos compêndios e das teorias, o escritor é, antes de tudo, um ser vivo e complexo, com o espírito em constante movimento. Em tudo, ou quase tudo, Noite desmente, com delicadeza, a “imagem oficial” de Veríssimo. Mesmo no célebre Clarissa, romance intimista de 1933, o escritor não chega à desfiguração que agora promove. Talvez possamos pensar que Noite, em vez de “figurativo” – como se diz do estilo que se pauta pela representação das formas – é um relato “desfigurativo”. Copiando nossos dias funestos, tudo se desmancha, tudo se confunde e se desfaz, a um ponto em que – doenças como a depressão e o pânico estão aí como provas – o mundo perde a forma. Sobrando a sensação incômoda, porque devastadora, de morte do real.

Noite se opõe não apenas ao estilo épico de O tempo e o vento – mil páginas e 200 anos de história gaucha –, mas também à escrita memorialística, por exemplo, de México, com seu apego à experiência e ao registro documental. Vivemos, nós também, imersos em um presente diante do qual toda transcrição se torna insuficiente, toda tentativa de captura fracassa. A atualidade de Noite se guarda justamente nesse vão entre a mente e uma realidade noturna e inatingível, no qual nos sentimos todos, hoje, espremidos. E onde a única opção parece, muitas vezes, apenas sobreviver.