Castello fev.19 Filipe.Aca

 

Leio um livro que me assombra: Huellas (Pegadas), do filósofo alemão Ernst Bloch (1885-1977). Leio na edição espanhola da Tecnos/Alianza, em tradução de Miguel Salmerón. Pequenos capítulos, assombrosos, dispostos ao longo de 179 páginas, devassam o espírito humano. Um deles, em particular, me chama a atenção: O tema da sedução. Vejo as pessoas hoje seduzidas pelas coisas mais impensáveis. Nosso mundo se tornou espantoso. Às vezes, tenho a impressão de que estamos todos hipnotizados. Pela mídia, pelas redes sociais, por discursos peremptórios, por espectros. Pensar a respeito da sedução e de seus efeitos se torna, assim, decisivo. Para isso, nada melhor do que voltar ao livro que Bloch publicou em 1969.

Meio século se passou, mas as coisas só se agravaram. Diz Bloch em sua epígrafe: “Como? Eu sou, mas não tenho posse de mim mesmo. Por isso, antes de nada, cheguemos a ser”. E por que perdemos a posse de nós mesmos? Porque hoje, talvez mais do que nunca, nos embriagamos pelas coisas. Nosso desejo não tem limites e ignoramos as armadilhas que ele carrega. Conta Bloch a história de um menino que estava muito contente com uma festa de família. Os convidados chegaram. Já terminaram a sopa, e agora será servido, com muita pompa, um grande assado – pata de boi. O pai se levanta, faz um enfático discurso, e começa a destrinchar a iguaria. Mas, quando ele finca um garfo no assado, escorre um asqueroso fio de pus. O animal estava doente e a cozinheira não percebeu isso. Naquele momento, a alegria e a gula do menino se transformam em horror. O prazer prometido – que tanto o seduzia – revela sua face negra.

Em outra lenda, Bloch nos fala de um jovem que, caminhando distraído por uma rua, esbarra com uma velha senhora. “Espere um pouco, meu querido, e vem comigo. Quero conduzi-lo a algo que lhe agradará”, ela lhe diz. O rapaz se deixa seduzir pela promessa de felicidade. Levou-o, então, a uma casa muito luxuosa, onde uma linda jovem o recebeu. Depois de se beijarem apaixonados, a moça o conduziu por um escuro corredor. Atravessaram salões magníficos, até que ela se refugiou em um leito. Excitado, o rapaz se lançou na cama. Mas a coberta cedeu e o chão também, e no instante seguinte, ele caiu, completamente nu, em plena praça do mercado. Era meio-dia e, sob a luz do sol, os negociantes vendiam seus produtos. Ao verem o jovem embriagado e sem roupa, todos começaram a debochar, gritavam e riam, e logo passaram a flagelar seu corpo nu. Até que, para sua sorte, um amigo apareceu e lhe jogou uma roupa, e assim ele pôde fugir.

A história relatada por Bloch demonstra, não se pode deixar de pensar, um preconceito milenar contra as mulheres, vistas como traiçoeiras. De qualquer modo, ela serve para ilustrar a embriaguez a que a sedução conduz. “Aqui nos encontramos não só com uma vítima, mas com um mal-entendido que golpeia o jovem até a medula”, ele escreve. Não importa a forma que a sedução apresenta – ela pode se encarnar em uma mulher, em um homem, ou até mesmo em uma pata de boi; mas o risco está sempre presente.

Mostra-nos Bloch que a sedução carrega em si um reverso monstruoso. Traz grandes esperanças, promete a mais intensa satisfação, mas, no instante seguinte, pode também nos horrorizar. A sedução hipnotiza. É o caso de Lars, um herói de Ibsen que Bloch rememora. Lars era um camponês, que trabalhava também como artesão de madeira. Um dia, caminhava por uma trilha rumo a um longo pasto, e não voltou. Todos na vila o procuravam, mas ninguém o achava. Até que o pároco tem a ideia de soar os sinos da igreja em pleno silêncio da meia-noite. Bastou o primeiro badalar para que Lars ressurgisse. Mas logo todos perceberam que ele estava enfeitiçado. Conta Bloch que Lars estivera em um quarto, onde não havia ninguém, com exceção de uma moça. A moça lhe trouxe um violino e o convenceu a tocá-lo. Mas, ao primeiro toque, o violino passou a tocar sozinho. Também delicados instrumentos musicais podem ser perigosos.

Até que ele ouviu o badalar de um sino e, em um salto, reapareceu na igreja. Rememora Bloch que, a partir daí, Lars se isolou. Passava a maior parte do tempo talhando troncos, tentando reproduzir o que tinha visto no quarto mágico. Finalmente, talhou uma boneca de madeira, inspirada na moça que o recebera. Achava, porém, que nunca conseguia reproduzir sua face, e recomeçava o trabalho do zero. Lars foi então se fechando em um abismo, a que ninguém mais tinha acesso. O violino mágico o levara à desgraça. Segundo uma versão, rememora Bloch, ele voltou a se retirar na montanha. De acordo com outra, foi achado enforcado no sótão de sua casa. Seja como for, a entrega ao desejo o levou ao desastre.

Contudo, adverte-nos Ernst Bloch, com ênfase: não devemos, apesar disso, desistir de nossos sonhos, pois nem sempre a sedução é traiçoeira. Vivemos tomados pela nostalgia do gozo. “A fuga do encanto não é sempre o descobrimento da luz. Fugir radicalmente do impulso que procede da luz pode ser uma deserção.” Não há prazer e alegria, ele nos diz, sem a experiência do risco. “Um mestre jasídico dizia que aquele que cumpre com os mandamentos vai certamente ao Paraíso, mas como não conhece nem a glória, nem o ardor, não sente nem a glória, nem o ardor do Paraíso também.” Conclui Bloch que somente no papel duplo de tentador e tentado se pode realmente chegar à virtude. Só assim, entregando-se ao risco, mas, ao mesmo tempo, dele se protegendo, “se conhece as luzes místicas que existem através da experiência do mundo e também os estigmas do engano que nele se escondem”. Não é, portanto, entregando-se cegamente, mas também não é fugindo que se experimenta felicidade. É preciso enfrentar os paradoxos da vida. É importante considerar a sedução. Porém, sem essas precauções, ela só nos levará ao abismo.

Bloch faz uma defesa enfática do pensamento que separa, analisa e distingue. Não se trata de viver intensamente, ou de se proteger horrorizado, mas de estar sempre preparado para as dualidades do mundo. Mostra Ernst Bloch, enfim, que muitas portas falsas nos esperam, mas entre elas estão as portas verdadeiras e, por isso, o destino do homem é escolher.

 

>> José Castello é escritor, jornalista e crítico literário. É autor de, entre outros, Inventário das sombras