Castello dez.18 MJMoreira

 

A ficção como tontura, como embriaguez, como desfalecimento. A ficção como uma grade, que nos hipnotiza e prende, mas, ao mesmo tempo, sacode e liberta. Essas ideias me vêm durante a leitura – turbulenta, insone – de Menino oculto, romance que Godofredo de Oliveira Neto publicou em 2013 (Record). A literatura comercial de hoje tenta nos convencer de que as ficções existem para iluminar e explicar o real. Ocorre que a realidade é uma grande barafunda e, mais que isso, uma cilada. Diante dela, a maior parte dos romances atuais submerge e se afoga; a realidade é frouxa e desengonçada, incapaz de sustentar um único passo. Esses romances “realistas” não conseguem sincronizar com o mundo. Talvez não seja culpa dos escritores: a realidade se tornou, de fato, opaca; nem só uma grade, mas uma tela, que veda qualquer passagem para a vida, que talvez seja mesmo intraduzível.

É isso justamente o que Godofredo consegue reproduzir: essa bruma densa que nos encobre. Não sei se “reproduzir” é a palavra correta, talvez não; a palavra mais adequada provavelmente seria “emparelhar”. Não: Menino oculto não torna o mundo mais fácil, ou mais legível; ao contrário, ele enfrenta a ilegibilidade de nosso mundo, joga com ela, experimenta sem medo suas flutuações e desenganos, seus impasses, e nos lança de cabeça naquilo que, por princípio, é quase impossível conhecer.

Dele escorrem, como uma torrente, algumas das feridas mais graves do contemporâneo: a falsificação, a violência, a corrupção, as quadrilhas armadas, o sexo doentio, o messianismo, a miséria. Conta a história de Aimoré Seixas de Mesquita Ávila, famoso copista e falsário nascido em 1980, em Coimbra, que se transferiu para o Brasil para dar aulas de português na Baixada Fluminense e se especializou em falsificar telas famosas, como Menino morto, o extraordinário quadro de Portinari. Aimoré é, em si mesmo, um personagem impenetrável, em torno do qual Godofredo dança e desliza, conseguindo com isso capturar apenas pedaços de seu semblante. A linguagem usada pelo escritor se parece com a linguagem em “janelas” da internet, na qual os temas surgem e desaparecem, se misturam. Internet, aliás, que é, ela também, uma obsessão do protagonista.

De fato, não é fácil dar conta do mundo escorregadio em que vivemos – e a ficção, muitas vezes, parece atrasada em relação a ele, como alguém que perdeu um ônibus e a quem só resta, agora, esmorecer à espera do seguinte. Vivemos no tempo da embriaguez, em que rodamos e rodamos sem, no entanto, conseguir escapar da grade escura que nos prende. Como transportar esse mundo turvo e buliçoso para a escrita? Como sincronizar com seu balé louco? Como reproduzir o despedaçamento e a desilusão em que nos encontramos? É disso, desse enfrentamento, que Godofredo não foge, nem se esquiva. Ciente de que ao escritor, se ele quer mesmo enfrentar seu tempo, só resta despir-se de si para entregar-se a uma realidade que, de fato, desconhece e que, a verdade é essa, o amedronta também. Pois escrever é, antes de tudo, enfrentar o medo.

Admito aqui minha perplexidade com a leitura de Menino oculto – como se o próprio livro, a cada página, se esquivasse e risse de mim, debochasse de meu esforço de pobre leitor crédulo, que quer “entender” e “explicar”, quando quase nada se entende e muito pouco se explica. O livro me incomodava, me agitava, me estrangulava. Só consegui prosseguir quando, em um intervalo da leitura, olhei para os lados e, apesar de todas as minhas esperanças de coerência e de tranquilidade, percebi que o mundo que me rodeia também é assim, também não passa de um grande turbilhão. Menino oculto é um espelho torto e traiçoeiro, mas muito eficaz.

O que é essa grade de que tento falar? Acontece que, a cada página, a cada parágrafo, o livro nos traz – como as frestas entre as barras de uma gaiola – uma esperança de entendimento. Vemos um pedaço aqui, outro ali, uma cena aqui, outra mais adiante; aos poucos, porém, meu desejo de coerência e de claridade se desfez. Mesmo com as frestas através das quais é possível observar o real, percebi que, apesar disso, eu continuava preso. Preso em quê? Na minha própria cegueira e agonia de leitor, e certamente também na maneira engenhosa com que Godofredo costura sua história.

Aimoré é um personagem dominado pela angústia – sentimento incômodo que ele transmite, sem qualquer piedade, ao leitor. Nos seus delírios, às vezes ele pensa ser o maestro de uma orquestra sinfônica, e não deixa de ser, pois sua simples presença magnetiza e conduz uma narrativa cheia de vozes. Doença ou excesso de lucidez? Não é um personagem simpático: violento e falsário, é também um assassino. Um homem, no fundo, sem destino – e aqui é inevitável recordar dos personagens outsiders de João Gilberto Noll. Tempo e espaço se embaralham em sua mente e, em consequência, na nossa mente, por mais atenta que ela esteja. O leitor se sente, vez por outra, contaminado pela confusão. Diante do livro, ele vê passar um mundo veloz e estraçalhado, que lhe escapa.

É um personagem de hoje: a verdade é que todos nós nos parecemos, um pouco, aqui e ali, com Aimoré. Estamos sufocados da mesma maneira. Podemos não ser nem falsários, nem assassinos, mas alguma coisa muito forte nos sacode, e assim nos agitamos como loucos, sem, no entanto, nos libertar das amarras que nos prendem. A paixão pela pintura atravessa sua vida como uma fantasia salvadora, mas também impotente – do mesmo modo que o Cego Baltazar, o mago que ele visita em uma gruta. Também nós habitamos um mundo cheio de bruxos, profetas e falsos visionários. Também nós soçobramos nas águas turvas de promessas que se esfarelam.

Com sua trama primorosa, ela, sim, sinfônica, Godofredo de Oliveira Neto nos deu um romance que, de modo doloroso, mas contundente, captura um tanto do mundo em que somos obrigados a viver. Talvez tenha sido isso justamente o que mais me doeu durante a leitura: sem nenhuma piedade, ainda que com delicadeza e engenho, Godofredo me colocou cara a cara com a verdade. E isso, por mais urgente que seja, sempre dói.