Castello.out.18 Luisa Vasconcelos

 

 

Em tempos pastosos, de poucos laços e frouxos compromissos, uma experiência fica cada vez mais difícil: a da entrega. Essa relação débil com o real aparece, também, na literatura em que, se não “escrevem por escrever”, muitos escritores escrevem tão somente pela brilhar, para lucrar ou pela mais chula vaidade; ou simplesmente para submeter-se – cínicos e adestrados – às regras e etiquetas do deus mercado.

Quem ainda tem a coragem de se entregar? Dar-se por inteiro, sem tirar vantagens e sem nenhuma garantia? A entrega simples e franca, sem outras intenções? Encontro uma luz para seguir relendo os Problemas inculturais brasileiros, livro que o pernambucano Osman Lins lançou em 1977, agora relançado pela Editora da Universidade Federal de Pernambuco, sob a organização de Fábio Andrade. É bom reencontrar Osman, que nunca foi um homem de meias palavras, ao contrário, mesmo nos momentos mais adversos, e seguindo contra a corrente, foi um escritor de palavras firmes e ímpares.

Na bela edição de 426 páginas apresentada por Lourival Holanda, amigo querido, que ganhei de presente de outro querido amigo, Roberto Leite – um grande pesquisador da obra de Hermilo Borba Filho –, fixo-me em um artigo especialmente precioso, que complementa o título da edição original: Do ideal e da glória. Um texto composto de afirmações fortes e definições categóricas, que justificam as palavras de Osman destacadas por Lourival em sua apresentação: “A palavra sagra os reis, exorciza os possessos, efetiva os encantamentos. Capaz de muitos usos, também é a bala dos desarmados e o bicho que descobre as carcaças podres”.

No centro do pensamento de Osman Lins está a questão – hoje tão desprezada e até ridicularizada – da entrega. A entrega de quê? Não de um bem material, ou de um título de nobreza, ou de uma promessa vã, mas a entrega de si. Escreve Osman: “O que o escritor deseja é realizar e entregar, aos semelhantes, principalmente aos que falam a sua língua, obras às quais haja consagrado o melhor de si mesmo”. Para isso, ele precisa se dispor – em um tempo governado pelos protocolos, métodos e prontuários – a se aventurar em um terreno cada vez mais rejeitado, quando não escarnecido: o da liberdade interior. Na era da técnica avançada, todos procuram por bulas, ordens expressas e normas reguladoras – todos querem se submeter. A submissão cega, rígida, impulsiva, se torna, assim, um valor. Há um medo cada vez maior da liberdade.

Nesses tempos, nos diz Osman, dois mitos cercam a figura frágil do escritor: a do idealismo e a da glória. Contra elas, noções que só o esvaziam, ele propõe que o escritor faça a defesa da ira e cultive uma “cólera profunda”. Adverte Osman, sem meias palavras: “Mande para o diabo os que exaltarem o seu idealismo, pois eles querem enganá-lo. Escrever é um ofício”. Em outras palavras ainda mais claras: escrever é uma luta. A noção do idealismo, quando associada ao escritor, só o afasta do mundo e de si mesmo. O “escritor sonhador” não tem compromisso com ninguém, não se entrega a coisa alguma, não cria laços. Ruge Osman Lins: “Custa-se a entender que o escritor não é um homem destinado a evadir-se do mundo, e, sim, a mergulhar profundamente nele”. O escritor como mergulhador; como escavador do real; como desbravador, que caminha à frente de seu tempo, e, não, medroso e submisso, na retaguarda. Mas o pensamento idealista deseja lhe roubar a potência, lançando seu ofício no campo das amenidades e curiosidades. Quer transformar os escritores em “uns trânsfugas, uns cegos, uns inocentes, uns jograis submissos e desarmados”. A ideia do jogral é importante, pois desmascara a fantasia de um escritor destinado apenas a divertir e relaxar seus leitores.

Não: o escritor não é um inocente, muito menos um tolo. Ao tomar para si a palavra, a primeira palavra, ele já sela um compromisso com o real e nele interfere, com contundência, para que a realidade não o fira. Bate-se Osman Lins, aqui, contra a literatura comercial – a literatura como mercadoria, escrava dos padrões de sucesso – que faz com que o escritor “abdique de ser livre”. Mas o escritor que se entrega se mantém em harmonia tácita, constante, implacável com a realidade, de quem é filho e, ao mesmo tempo, criador. Isso acima de qualquer ideia de glória ou lucro. Escreve Osman ainda contra os ideais (comerciais) da literatura como distração, pois “a distração é um anestésico”. No meio da grande zoeira, ele encontra um personagem silencioso e abnegado: “Eis, porém, que um homem não está distraído: escreve”. Eis o escritor.

Lembra também que não são apenas os livros e as palavras que despertam suspeitas, mas a simples e objetiva presença do escritor lutador. Um escritor: isso basta, por mais difícil que seja sustentar essa posição. Esse escritor que “mesmo assim, em silêncio, com a cabeça baixa (como o touro que investe), ele vai em frente e escreve”. No ruído geral, diz, há um silêncio: a sua presença. E, ao contrário do que pode parecer, ele não está sozinho. Continua, confiante: “Um número cada vez maior de pessoas procura ser aquele desconcertante silêncio que se faz presente em meio ao rumor”. Propõe, então, que os escritores deixem tudo o mais de lado e mandem, “solenemente, tudo o que se pareça com a glória para o lixo”. Que o escritor tenha a coragem de apenas ser. E que ele não abra mão, nunca, jamais, da ideia de entrega. Pois só a entrega abre uma porta verdadeira para outros homens.

Em nossos dias turvos e exaltados, ler Osman Lins nos revitaliza e energiza. Suas palavras nos trazem de volta a coragem. Coragem para ser. Elas nos apontam caminhos e, assim, abrem fendas na escuridão. Como diz Roberto Leite na gentil dedicatória do livro que, em um encontro recente em João Pessoa, me presenteou: que os textos de Osman nos ajudem a resistir ao pior do presente. Que nos alimente a cólera profunda que, em vez de ser puro ódio, se transforma em potência. Que ele nos injete a coragem. Sim, porque vamos precisar.

 

> José Castello é escritor, jornalista e crítico literário. É autor de, entre outros, Inventário das sombras