Castello ago.18

 

Aos saudosistas do autoritarismo, que hoje se multiplicam, desesperançados e ferozes, pelo país, sugiro a leitura não de um panfleto político, não de um tratado de Sociologia ou de um ensaio de história contemporânea, mas de uma inspirada narrativa infantojuvenil: Clarice, de Roger Mello (Global Editora, com lindas ilustrações de Felipe Cavalcante). No inesquecível livro de Roger, que já surge como um clássico, uma menina, chamada apenas de Clarice – uma homenagem declarada à escritora – relata sua difícil vida sob um regime político de trevas e exceção.

É um mundo revirado, um mundo que, a cada pequeno passo, pede não só compreensão, mas, sobretudo, decifração. “Esse é um mundo em que tudo está de cabeça pra baixo”, descreve a menina. Amparada pela presença de seu pequeno companheiro Tarso, jogada aqui e ali para as mãos de adultos diferentes, Clarice enxerga um mundo pela metade – exatamente como acontece quando, durante a noite, sem a ajuda de uma lanterna ou vela, atravessamos um quarto escuro. O que se vê é muito pouco, mas o bastante para despertar estupefação e as piores fantasias. Pessoas que desaparecem, livros de capa vermelha que são lançados, durante a noite escura, em um grande lago, homens duros e anônimos, vestidos de uniformes, que Clarice define apenas como E.L.E.S. Escuridão, estranhamento, e, mais ainda, medo.

“Que sentido faz alguém que tem tantos livros atirar livros pela ponte?” Não há sentido algum, mesmo para quem consegue ver a paisagem por inteiro, ainda mais para uma menina, de quem quase tudo se esconde, ou se tenta esconder, e que, em consequência, vê sempre um mundo partido ao meio. “No mais, as coisas ficam assim sem muita explicação no mundo dos livros afundados.” Um mundo que foge – todos parecem estar assustados e em fuga. Um mundo marcado pelo rombo de uma mãe desaparecida, de quem a menina não teve, sequer, tempo para se despedir. “Se não faz sentido, procuro entender um movimento sem sentido.” A razão, mesmo quando tudo conspira contra ela, nunca perde a esperança.

Fogem, sobretudo e sem que ela possa entender por que, da polícia de E.L.E.S. Há alguma coisa errada, há uma guerra que não se deixa ver, alguma tensão que sempre escapa e que, no entanto, está, o tempo todo, ali mesmo. Nesse território de indefinição, o próprio nome da menina, Clarice, passa a soar estranho. “Clarice clarice clarice, meu nome assim repetido vai ficando longe de mim. Quanto mais repetido, mais estranho parece o meu próprio nome.”

O primo chega para visitá-la e a tia – que agora cuida da menina – pede que Clarice nada fale com o garoto sobre livros e pedras. Livros amarrados em pedras que são tragados pela boca imensa do lago: o que podem significar? Como conseguir ler um livro que foge? Uma vizinha a leva, na companhia de Tarso, a uma sessão de cinema no Cine Brasília. Sim: é de Brasília que se trata. Lá está o grande lago Paranoá, lá estão os livros guarás assustados e perdidos entre os carros, lá está o nome, Brasília, que se repete em várias partes. Lá estão os Aero Willys Itamarati, os carros da época – “palácio sobre rodas”, se dizia – a carregar figuras obscuras e ameaçadoras.

O pai de Clarice também sumiu. Trabalhava para E.L.E.S, com a missão de cortar cenas de filmes consideradas perigosas. Quando falam do pai, usam a palavra “subversivo”. “Não sabíamos o que era essa palavra, ‘subversivo’. Mas ouvíamos muito, então repetíamos sem saber mesmo: subversivo, subversivo subversivo. Era bom de repetir.” Sim: talvez a repetição interminável da palavra misteriosa fosse uma maneira de controlar – ou de imaginar controlar – o próprio medo. Nesse mundo adverso, nada se completa, nada se conclui, tudo se evapora – então restam palavras vazias a que se agarrar em busca de uma explicação. De uma respiração.

“Nossa conversa ficou pela metade também. Como um filme cortado.” Mesmo em um mundo tão adverso, a tia de Clarice e mãe de Tarso continuam a lutar, e a menina é arrastada por aquelas tentativas meio desesperadas de emprestar um sentido, ou de oferecer uma solução, ao incompreensível. Os adultos mudam as coisas de lugar, escondem e disfarçam objetos, escapam. Fazem coisas incompreensíveis, mas que Clarice respeita mesmo sem compreender. Ideias incômodas lhe vêm à mente: “Vai ver fabricam um explosivo”. Mas o que é explosivo mesmo é aquele estado de turvação e de negação em que ela é obrigada a viver.

Nesse ponto, Tarso é mais esperto do que ela: “O Tarso ouvia conversas que os outros tentavam esconder. Um especialista, ele. Eu não me atrevia a ouvir os silêncios”. Silêncio, pausas, palavras engolidas a seco, códigos, gestos escondidos: todo um mundo não só a decifrar, mas a suportar. Como as lacunas são profundas, Clarice as preenche com a imaginação, e assim chega a explicações ainda mais desconexas e incompreensíveis. “Uma outra conversa foi interrompida pela metade.” Tudo fica pela metade, nada se conclui, ou se fecha; partido ao meio, é um mundo manco e vacilante que lhes resta.

A realidade se torna, cada vez mais, indecifrável. Quem fala o que? Frases misturadas, vozes também, palavras que se derretem e se confundem. Trevas: a palavra é mesmo essa. Para se salvar de tanta confusão, Clarice se põe a conversar consigo mesma. “Eu pergunto e eu respondo. Eu concordo, eu não concordo, eu fico dias sem falar comigo.” Assim, tem, pelo menos, algum controle sobre a realidade.

Até que Tarso vai embora. Clarice o leva ao aeroporto. Ele diz que vai para a Coreia, conta muitas histórias da Coreia, mas ela sabe que, na verdade, ele vai para o Chile. Assim, escapa daquele mundo raso e uniformizado. E.L.E.S. têm um mundo só deles, em que tudo se repete e se fecha. “E.L.E.S. têm seu próprio aeroporto, o seu próprio mercado, E.L.E.S. têm um planeta só deles.” Para se salvar, Clarice se apega a lembranças do futuro. Só no futuro pode haver uma saída. Sim, porque, em um mundo que se fechou, já não há saída alguma. Não se pode sequer respirar. É preciso não esquecer.

 

* José Castello é escritor, jornalista e crítico literário. É autor de, entre outros, Inventário das sombras