Existem escritores que suplantam a própria obra – que a ultrapassam e a engolem. Existem escritores de todos os tipos. Alguns, como Raduan Nassar, ou Dalton Trevisan, se escondem sob a obra, como meninos emburrados e teimosos, que renegam seus tesouros. Outros, como Clarice Lispector ou João Gilberto Noll, a ela se misturam para sempre; com o avançar dos anos, como se fossem as duas faces de um mesmo disco, fica cada vez mais difícil separá-los. Outros, ainda, e aqui só posso pensar em Hilda Hilst, superam a obra, ultrapassam-na com tal velocidade, que, apesar de sua inegável grandeza (como é o caso evidente de Hilda), ela fica para trás, esfumaçada, perdida não sob os grandes personagens que a habitam, como Kadosh ou A obscena senhora D., mas sob o grande personagem, a feiticeira genial que a criou.
Ainda hoje, para o bem e para mal, isso acontece com Hilda Hilst, e a proliferação da internet, com suas divas e celebridades, só acentua isso. Como efeito, e certamente como um defeito meu, uma espécie de vício intelectual, sempre que penso em Hilda, penso nela mesma, a mulher corajosa e frenética, a escritora falante, a revoltada que se isolou do mundo para conversar com os mortos, em especial com o pai esquizofrênico, Apolônio, e que sempre, sempre, mesmo depois de velha e um tanto triste, nunca perdeu a audácia intelectual e a fúria que a definem.
Em geral, associamos a expansão do mundo virtual às luzes – dos computadores, smarthphones, tablets. Mas me arrisco a pensar ao contrário: dissolvidos em uma massa disforme de informações, sites, blogs, páginas do Facebook, seguidores, milhares de personagens ilustres, a internet às vezes me dá a sensação de uma grande noite, em meio à qual poucas coisas conseguimos ver. Hilda é uma dessas imagens de exceção que emergem em meio à noite virtual. Que propaga sua voz e que nos espanta, sobretudo espanta. Mesmo antes da internet, ela sempre soube dos riscos inerentes a essa superexposição, mas nunca desistiu de si.
Tento ouvi-la, mais uma vez, não através das ondas de rádio – seguindo os ensinamentos do sueco Friedrich Jurgenson, o autor de Telefone para o além, que gravava as vozes dos mortos e de quem Hilda se considerava uma abnegada discípula – mas, de forma mais simples, mais banal, através de Fico besta quando me entendem, coletânea de suas entrevistas organizada por Cristiano Diniz em 2013 para o selo Biblioteca Azul. E quantas vozes, fortes, discrepantes, até antagônicas, Hilda carrega. Foi uma leitora apaixonada da Carta a El Greco, de Níkos Kazantzákis, livro que é uma homenagem ao grande pintor místico El Greco, nascido na ilha de Creta. Disse El Greco certa vez: “Uma chama atravessa as pedras, os homens, os anjos, isto é o que quero pintar”. Era sobre essa chama invisível, mas contundente, que Hilda sempre desejou escrever, e por isso o livro de Kazantzákis, ela dizia, mudou sua vida.
Sempre acreditou, portanto, na potência radical da literatura, em sua força devastadora, em seu poder ambíguo de construir, mas também de destruir. “Para ter um filho, a mãe precisa, violentamente, entre sangue e fezes, expulsá-lo de si”, um dia ela me disse. Por isso, nos deixou uma literatura atordoante. Numa das entrevistas, Hilda afirma: “Os prudentes nos têm acusado de dar asas demasiado grandes aos anjos e de ter a imprudência de querer lançar nossa flecha mais além das fronteiras do humano”. Hilda buscava, sobretudo, o inumano; o que é bem diferente do desumano, porque, enquanto este destrói o humano, aquele o ultrapassa.
Como El Greco, escreveu em busca de “uma ascensão, um abismo, um deserto”. Disse El Greco ainda: “Existe sob as cartas algo imortal. É isso o que busco. O que quero pintar”. A busca de Hilda, porém, estava além da metafísica, tanto que estudou sem parar a física quântica, em busca de uma imagem material da alma. Não, não é qualquer leitor que pode suportá-la, e eu mesmo, admito, muitas e muitas vezes não a suporto. A escrita de Hilda Hilst busca a intensidade – a tal chama escondida de que falava El Greco. Sabia, porém, que nem todos os leitores estão preparados para a intensidade; ainda mais, que hoje a maior parte deles busca nos livros apenas fuga e diversão. Na raiz de sua escrita, porém, se guarda a loucura, tanto que só começou a escrever depois que o pai enlouqueceu. Escrever foi, em consequência, uma forma de enlouquecer também. Exigia que sua escrita tivesse “razão, fantasia e proporção”, mas sabia também que a fantasia e a hiperlucidez são muito mais do que a condição humana pode suportar.
Os leitores de beira de piscina não suportam Hilda Hilst. E ela mesma, cheia de culpa, se perguntava até que ponto tinha o direito de atingi-los e de atordoá-los. Repetiu muitas vezes que escrevia “um segundo antes da flecha ser lançada”. Isto é, em estado de máxima tensão, de completo atordoamento, à beira de uma explosão. Como Clarice, mais uma vez, escreveu para “ir além da linguagem” e para lutar contra “o saber enjaulado da academia”. Escreveu, também, contra a ideia da eficiência e do contemporâneo. Tinha consciência do tormento em que, muitas vezes, sobretudo para os leitores mais banais, sua escrita se transforma. “Sou esquecida porque todos os meus personagens têm o mau hábito de pensar.”
Poucas semanas antes de morrer, em 2004 aos 74 anos, em um telefonema noturno Hilda me disse: “Eu me olhei no espelho e estou horrenda. Virei uma velha coroca. Agora me assusto comigo mesma”. Apesar disso, sempre defendeu a ideia de que o que mais falta às pessoas é a noção do transitório. Estamos todos em trânsito, Hilda dizia – e, quando a ouvia falar, também no transe, eu pensava. Seu grande personagem, imitando o pai Apolônio, não foi essa ou aquela pessoa, mas os estados extremos do ser que todos nós, em alguns momentos da vida, horrorizados, experimentamos. Reencontrar Hilda Hilst, em tempos mornos e apáticos como o nosso, só pode nos enriquecer. À questão ética – será que o leitor suporta a intensidade? – ela respondeu, sempre, com mais coragem e mais fúria. E por isso se agigantou, e por isso se coloca, ainda hoje, à frente de seus extraordinários livros.