Contra as turbulências e incertezas do mundo contemporâneo, muitos se refugiam no mito consolador da pureza. Julgam-se puros, incorruptíveis, “limpos” — a sujeira e o lixo ficam com os outros. Os “puros” proliferam, da extrema direita à extrema esquerda. Na verdade: eles caracterizam, cada vez mais, essas duas posições extremadas, intransigentes, inflexíveis. “Puros”: “sem misturas, não alterados pela impureza, ou por elementos estranhos”, define, serenamente, o dicionário. Há, nessa posição, um sentimento de superioridade e de nobreza. Com seu “puro sangue”, eles se afastam dos infelizes contaminados. Não sujam as mãos com as nuances e acordos do mundo. Não negociam, não compactuam, não firmam pactos, nunca abrem mão de si: são os donos absolutos da verdade.
Em busca de uma luz para decifrá-los, releio a Carta aos “puros”, poema que Vinicius de Moraes escreveu no fim dos anos 1950. Prudente, também Vinicius grafa a palavra, “puros”, entre aspas, ou então com uma irônica inicial maiúscula; pois se trata de uma pureza discriminatória, arrogante e, sobretudo, ilusória. Uma pureza que a poesia, que a tudo arrasta e a tudo inclui, vem colocar não só sob suspeita, mas relativizar e desafiar. Assim começa o poeta: “Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros/ E em cujos olhos queima um lento fogo frio”. A ideia da frieza, da ausência de calor, é muito importante, já que, rejeitando qualquer contato com o humano, que é sempre infectado e incerto, que é sempre caloroso, os “puros” se colocam acima de tudo, como se pertencessem (assim pensam) a uma raça superior.
“Vós de nervos de nylon e de músculos duros/ Capazes de não rir durante anos a fio”, prossegue Vinicius. A imagem do nylon é significativa. Volto ao dicionário: Nylon — denominação de vários materiais sintéticos de poliamida”. A ideia do “sintético” aponta para a noção de síntese, de Totalidade — zona na qual todas as diferenças se apagam, recobertas por uma única aparência. Já a poliamida, material de fibra sintética, é muito usada nas suturas durante as cirurgias; isto é, no processo de unir partes diferentes para que, costuradas, recuperem a aparência única. Os “puros” seriam, em consequência, homens dispostos a disfarçar as diferenças e os contrastes, empenhados em coser uma visão de feição única — talvez absoluta — do real.
“Ó vós, homens sem sal, em cujos corpos tensos / Corre um sangue incolor”, continua Vinicius, sem perder a veemência e a coragem. Homens sem tempero, sem nuances e gradações, que não aceitam os remendos e os paliativos; que se julgam do lado das coisas certas, originais e definitivas. A imagem do sangue incolor acentua essa postura: nem vermelho, nem azul, nem cor alguma, esse sangue sem cor definiria o “puro sangue”, do qual todos os outros seriam, apenas, derivações degeneradas. “Ó vos, homens iluminados a néon/ Seres extraordinariamente rarefeitos”, diz Vinicius, apaixonado e destemperado como sempre é, poeta dos excessos e das aflições extremas, poeta radical não porque se julgue puro, mas, ao contrário, porque se lança de coração aberto nas feridas do mundo.
Na química, néon significa “menos cor”. Menos contraste — neutralidade suposta e, de novo, superioridade. Sangue incolor: que não se define, que não tem lado, que está acima das escolhas e das posições, já que todos eles seriam apenas derivativos pervertidos de uma postura original. “Ó vós, a quem os bons amam chamar de os Puros/ E vos julgais os portadores da verdade”. Vinicius toca, nesses versos, no problema central. O que está em jogo nessa luta pela pureza é a posse da verdade. Não uma verdade relativa, humana, feita de imperfeições e de furos; mas uma verdade absoluta, imaculada, inquestionável, que não aceita o contato nefasto com outras verdades, ou outras posições. “Ó vós que só viveis nos vórtices da morte”, continua Vinicius, ciente de que essa posição “pura” é, antes de tudo, uma negação cruel da vida. Pois a vida é movimento, é mudança, a vida é impura.
“Ó vós que pedis pouco à vida que dá muito/ E erigis a esperança em bandeira aguerrida”, segue, um pouco mais à frente, o poeta. Na posição dos “puros” parece haver, sempre, um desprezo, um nojo ao presente. Uma repulsa às circunstâncias e ao limitado. Uma náusea contínua diante dos acordos, das dúvidas, da inconstância. Um desdém, em resumo, por tudo o que é humano e, em conseqüência, vacilante e volúvel. Daí que os “puros” preferem, quase sempre, a perfeição ilusória da esperança — esse pedaço de vida esboçado no futuro. A esperança como foco: eles, que rejeitam o presente, endeusam o futuro. Só o futuro não está contaminado. Só o futuro é reto e incorruptível. Só o futuro é perfeito e, por isso, ele é o único lugar que os dignos e os “cidadãos de bem” devem habitar.
´”Ó vós que vos negais à escuridão dos bares/ Onde o homem que ama oculta o seu segredo”, continua o poeta. Nesses dois versos, em uma síntese precisa, Vinicius enumera alguns dos inimigos da pureza. A escuridão, que guarda o invisível e onde pode surgir o indigno e o inaceitável. O amor, que é turbulência e ardor, que exige entrega impensada, doação louca, e que vem para desestabilizar as cores claras da pureza. O segredo, que guarda o desconhecido e o impronunciável — portador, por isso, do grande perigo. Perigo de que a pureza se manche; de que a grande borra da vida se derrame, para rasgar toda a ilusão de verdade e de bem. Do segredo pode sair qualquer coisa: uma dúvida, um sentimento agressivo, uma lágrima dolorosa, um soco que venha a derrubar, em um só ato, posições tão sólidas.
Deveríamos distribuir a Carta aos “puros” pelas ruas do país, como um alerta e uma advertência. O poema de Vinicius solapa os fundamentos frágeis da pureza. Desmascara as ilusões que a sustentam. Arranca os “puros” de sua redoma impecável, racha a redoma, e os lança no grande caldeirão da existência. Viver, de fato, não é fácil. Sobretudo porque exige disposição para os contrastes e as surpresas. Exige coragem para se deixar contaminar pelas oscilações e flutuações da existência. A vida não é uma linha reta, e por isso é incerta, e por isso exige diálogo e troca, negociação e controvérsia, e só por isso é bela. Só por isso é vida.