No triste Brasil de hoje, tenho, muitas vezes, a sensação de que estamos submersos em alguma espécie misteriosa de hipnotismo. As pessoas estão apáticas, alheias, abobalhadas, como depois de um grande golpe – e, de fato, houve um grande golpe. Parecem movidas por um sonambulismo coletivo: não conseguem reagir, não podem mais lutar, perderam a posse de si. Imitam os zumbis: rondam, sem direção, numa sala escura. Ao meditar sobre essa tênue fronteira entre o real e o pesadelo, imediatamente me lembrei de um romance um tanto desprezado, mas sem dúvida um grande romance: Solidão continental, que João Gilberto Noll publicou no ano de 2012.
Retido numa dolorosa – quase desumana – solidão, seu protagonista circula, às cegas, pelo mundo. Só com imenso esforço ele vislumbra partes da realidade, que sente como que separadas de si por uma muralha invisível. A própria realidade parece deformada, estilhaçada. “Há uma rachadura em tudo. É assim que a luz entra”, escreveu, certa vez, o compositor e poeta canadense Leonard Cohen. A fórmula de Cohen define, de modo preciso, o personagem de Noll. Ele vive, como declara logo nas primeiras linhas, numa “plenitude vazia”.
Agarrado ao livro, salto logo para o capítulo 11, no qual o protagonista faz algumas de suas mais contundentes confissões. “Eu vivia entre fantasmas, pensei, e dessas companhias etéreas eu não queria me apartar”. Por que preferir os fantasmas? Por que abdicar do mundo real? Ele se justifica: “Os seres físicos não me ofereciam nada mais convincente do que essas presenças esquivas ao meu toque, geralmente caladas”. Decepcionado com o mundo de fujões em que deve viver, sozinho, absolutamente sozinho, ele prefere apostar em novas maneiras de ser. Aqui ecoa a sentença de Jean Genet, em seu inquietante Diário de um ladrão, de 1949: “Minha coragem consiste em destruir todas as habituais razões de viver e em descobrir outras”.
Também o protagonista de Noll vive como um ladrão que, em desespero, rouba a energia alheia. No extremo do desamparo, ele decide, por exemplo, tornar-se um “seguidor” de um desconhecido, a quem trata por Frederico. “Onde mais estar que não ali à beira do rio, aguardando que o garoto se decidisse a dar alguma indicação para o rumo da minha companhia? Quanto mais a minha condição acendia em mim alguma humilhação, mais me agarrava àquele cenário”. É o que vejo hoje com tanta frequência: colados às suas rotinas de trabalho, hipnotizados diante da televisão, ou do computador, “fora de si”, arrebanhados por um destino que os arrasta, homens e mulheres rondam as cidades, esquecidos do presente que lhes cabe viver.
Para o protagonista de Solidão continental, o garoto Frederico se torna “o salvador” – e somos tantos, hoje, os que buscamos salvadores de segunda mão, vendidos nas esquinas, ou na internet. Essa submissão – essa humilhação – traz o falso sentimento de pertencer, mas nos deixa tristes e vazios. “Ele se pôs a caminhar e entrou por uma senda da mata. Eu atrás, em meio a alguns cachorros retardatários”. A solidão mais forte – a solidão continental – não é a ausência dos outros, mas a ausência de si mesmo. É quando abdicamos de nós mesmos, é quando nos abandonamos, que a solidão se torna absoluta.
O personagem de Noll começa sua aventura na Randolph Street, em Chicago – mas podia ser na Rua XV, em Curitiba, ou no calçadão de Copacabana. Em Illinois, ele procura Bill, um jovem que conhecera 28 anos antes, que fora seu amante, e com quem depois perdeu contato. Agarrado a um mito do passado, tudo se embaralha e se esvai, o mundo perde a consistência. Quando dá por si, sempre arrastado pelos fatos e nunca no comando de si, o protagonista está, na verdade, diante de Tom, um rapaz mórmon, “de olhar vazio”, que é seu aluno de português. Tom lutou no Iraque e não consegue se esquecer do corpo de um companheiro de guerra, que encontrou apodrecendo, abraçado ao cadáver de um soldado iraquiano.
Assim também estamos hoje: cercados de fantasmas do passado que parecem ressurgir em plena vida, abraçados a espectros, envolvidos por circunstâncias que nos asfixiam e dentro das quais mal conseguimos nos mover. Entregues a automatismos, a hábitos, a manias, para continuar a existir. Na rua – no réveillon, no Carnaval, no futebol – estamos em meio à multidão; mas de que ela realmente nos serve? Em que medida, de fato, ela aplaca – ou, ao contrário, aprofunda – nossa imensa solidão? A solidão mais grave, Noll nos mostra, é vivida entre fantasmas. Com os quais não criamos laços, não conseguimos construir um projeto, com quem não podemos contar.
“Eu vivia entre fantasmas, pensei, e dessas companhias etéreas eu não queria me apartar.” Essa opção pelo morno e pelo morto é, na verdade, uma manifestação do medo. Medo de viver. Medo de lutar. Medo de ser. “Perguntei-me (...) se eu não era um desses fantasmas que apenas se extasiam com o quase nada que os constitui.” Desvitalizado, o protagonista de Noll se limita a rondar pela vida. Investido desse destino fantasmagórico, e ainda que uma multidão o cerque, ele estará para sempre sozinho. É um pouco o que sinto hoje quando caminho pelas ruas. Estou entre pessoas (sou uma dessas pessoas?) que não conseguem mais inventar-se.
“Quem era eu, onde morava eram dados inacessíveis que eu temia sinceramente ter perdido em definitivo.” De repente, o personagem de Noll tem um vislumbre: ao respirar fundo, vem-lhe “à tona um nome de quatro letras chamado João sem saber com convicção se aquele de fato era o meu nome”. Ruptura final: personagem e autor se misturam. A última fronteira de segurança se rompe. O esquecimento de si é, de fato, o estágio terminal da solidão. Com a voz mecânica, fornecemos o número do RG, do CPF, do telefone. Mas até onde esses números frios dizem, de fato, quem somos? Eles nos identificam para os outros, mas não para nós mesmos. Existe maneira mais brutal de estar sozinho? Como o Gregor Samsa, de Kafka, imersos no grande horror, nos limitamos a rastejar. O golpe parece ter sido violento demais. Enfurnados em nossas cascas, mal conseguimos pensar que, talvez, respirar, apenas respirar, e ter um coração que bate, ainda não seja viver.